Texto: Alessandra Corrêa
Um livro lançado neste ano nos Estados Unidos traz um argumento surpreendente para muitos leitores da Bíblia: o de que pessoas escravizadas tiveram um papel crucial, e pouco reconhecido, na criação e na disseminação do Novo Testamento.
Em God’s Ghostwriters: Enslaved Christians and the Making of the Bible (“Ghostwriters de Deus: Cristãos Escravizados e a Criação da Bíblia”, em tradução livre), a historiadora Candida Moss afirma que pessoas escravizadas ajudaram os discípulos de Jesus a redigir os textos bíblicos e a espalhar o Evangelho pelo Império Romano.
Segundo Moss, que é professora de Teologia da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, somente 5% a 10% da população era alfabetizada na época – entre eles, os mais ricos.
A maioria dos apóstolos e primeiros cristãos não sabia ler ou escrever. Mesmo os que sabiam, muitas vezes eram impedidos por sofrer de artrite ou problemas de visão, em uma época em que óculos não existiam.
Compor e copiar textos a mão era um trabalho árduo e fisicamente cansativo, que os membros da elite não queriam fazer e que o resto da população não tinha como fazer.
Assim, a tarefa cabia geralmente a pessoas escravizadas, que eram alfabetizadas desde jovens para desempenhar a função de secretários, escribas, leitores e mensageiros.
Nesse contexto, o fato de alguém ser identificado como autor de um texto não significava que tinha escrito com suas próprias mãos.
O mais comum era que a obra fosse ditada a pessoas escravizadas ou, em alguns casos, que haviam sido libertas mas, de acordo com Moss, não eram totalmente livres.
A historiadora argumenta que, ao redigir o material ditado por outros e copiar manuscritos, esses escravizados não apenas reproduziam os textos, mas contribuíam de forma ativa como coautores, fazendo correções e edições.
Essa colaboração se estendeu pelos dois primeiros séculos da Era Cristã, segundo a pesquisa.
“Você pode ver pessoas escravizadas e ex-escravizadas como parte fundamental da atividade missionária, da escrita e da interpretação bíblica no início do cristianismo. Elas estão envolvidas em tudo isso”, diz Moss à BBC News Brasil.
Os escravizados viajavam a locais distantes para ler passagens bíblicas a fiéis que não eram alfabetizados, em um papel que Moss compara ao de missionários, escolhendo gestos e entonação para transmitir e interpretar os ensinamentos de Jesus.
Dessa forma, ajudaram a moldar os fundamentos do cristianismo.
Moss cita o exemplo das Cartas de Paulo. Segundo a historiadora, Paulo era o único apóstolo alfabetizado, mas ele próprio indica, em seus textos, que usava a ajuda de outras pessoas para ler e escrever.
Além disso, algumas de suas cartas foram redigidas quando ele estava na prisão, que costumava ser em um subsolo escuro e onde seria difícil escrever.
Moss considera provável que tenham sido ditadas a assistentes escravizados, emprestados por seguidores ricos.
A Epístola aos Romanos traz o trecho “Eu, Tércio, que escrevi esta carta”, indício de que foi redigida com a ajuda de Tércio.
De acordo com Moss, ele é comumente descrito como escriba, o que pode dar a impressão de que era um amigo ou alguém que havia desempenhado a tarefa de forma voluntária.
A historiadora lembra, porém, que escribas e secretários na Era Romana não eram profissionais de classe média, mas sim pessoas escravizadas ou ex-escravizadas que haviam sido libertas.
Moss destaca ainda que Tércio significa simplesmente “Terceiro”, nome comum entre escravizados na época.
A Epístola aos Filipenses menciona Epafrodito. De acordo com Moss, o nome está relacionado à deusa do amor, Afrodite, e tem o significado de “belo”, sendo comum entre escravizados na Antiguidade, período em que muitos meninos eram explorados sexualmente.
Outro exemplo é o Evangelho Segundo Marcos. A historiadora salienta que o autor é descrito como intérprete de Pedro e argumenta que há indícios de que Marcos era escravizado.
Moss afirma que, à medida que o cristianismo passou a dominar o Império Romano, o status de escravizados dos primeiros cristãos foi apagado, e “muitos heróis das Escrituras foram promovidos a bispos”.
Ela lamenta que as contribuições dos escravizados para o Novo Testamento e o florescimento do Cristianismo não sejam reconhecidas.
Como não há evidências diretas, a interpretação de Moss é baseada principalmente na leitura de textos religiosos e seculares e no que se sabe sobre a escravidão nesse período histórico, e o livro recebeu algumas críticas por usar muitas “conjecturas” e “especulação sobre o passado”.
Mas ela salienta que foi “transparente sobre onde há evidências melhores ou piores” e garante que o argumento de que pessoas escravizadas colaboraram no Novo Testamento não é especulação.
“Gostaria que pensássemos de forma diferente sobre quem estamos lendo quando lemos a Bíblia”, afirma.
“Não é apenas um livro de reis e bispos. É também uma coleção de livros produzidos por pessoas de diferentes setores da sociedade, que merecem visibilidade.”
Em entrevista exclusiva à BBC News Brasil, Moss falou sobre o papel dos escravizados na Antiguidade, como contribuíram para a Bíblia, as evidências que encontrou em sua pesquisa e a resposta aos críticos.
Leia no link abaixo os principais trechos da entrevista.
Publicado originalmente na BBC News Brasil