Uma das mais poderosas instituições religiosas e capitalistas do mundo, a Igreja Católica tem US$ 3 trilhões em bens imóveis e quer aumentar sua rentabilidade para aplicar mais no social, diz o papa Francisco
A imprensa concentra suas reportagens sobre o papa Francisco — tratado como pop star por jornais, revistas, rádios e tevês — nas questões morais, que, de fato, são importantes interna e externamente. Mas a reforma proposta pelo argentino Jorge Mario Bergoglio é mais ampla do que parece à primeira vista e a resistência interna não é apenas quanto aos aspectos morais e comportamentais.
O religioso está mexendo nas questões econômicas, derrubando certos privilégios e buscando tornar a Igreja Católica mais rentável, ou melhor, mais produtiva para si e fieis. O jornalista norte-americano Alexander Stille, na reportagem “E pur si muove”, detalha partes da reforma econômica e financeira que está sendo articulada de maneira rigorosa e, até, implacável nas estruturas da maior organização religiosa do mundo. O texto, publicado pela revista “New Yorker” — uma das mais prestigiosas dos Estados Unidos —, saiu no Brasil na edição de janeiro da revista “Piauí”, com tradução de Sergio Tellaroli.
A matéria do professor de Jornalismo da Universidade Columbia tem sete páginas e discute, de maneira enfática, os problemas morais da Igreja Católica, instituição milenar que tem cerca de 2,1 bilhões de seguidores e, apesar do crescimento das igrejas evangélicas, é dominante no Brasil. Vale a pena ler toda a reportagem, mas concentro-me basicamente nos “problemas” financeiros, pois os morais estão sobejamente discutidos.
O Instituto para as Obras de Religião (IOR), como é conhecido internamente o Banco do Vaticano, é uma solução e um problema (leia o texto “O livro negro do Vaticano”) para a Igreja Católica. Figurou, “no princípio dos anos 2000, entre os dez maiores paraísos fiscais offshore do mundo, abrigando evasões de impostos e lavagem de dinheiro”.
O papa anterior, Bento XVI, teve de assinar uma lei antilavagem de dinheiro para conter o liberticídio dos financistas das Igreja Católica. Em 2012, o Vatileaks mostrou que, em termos de finanças, o Banco do Vaticano não era nada diferente dos bancos suíços e dos paraísos fiscais. O livro “Sua Santidade: As Cartas Secretas de Bento XVI” (Leya Brasil, 320 páginas), de Gianluigi Nuzzi, pôs lenha na fogueira e provocou novas mudanças na condução econômica e financeira dos negócios da Igreja Católica.
Gotti Tedeschi caiu da presidência do Banco do Vaticano e o responsável pelo vazamento dos documentos secretos, o mordomo de Bento XVI, Paolo Gabriele, foi preso. De fato, Paolo Gabriele vazou os documentos, mas, como todos sabem na cúpula da Igreja Católica, era apenas o mordomo, quer dizer, uma ponte para autoridades de fato poderosas. O Banco do Vaticano fechou, “em silêncio, cerca de 4600 contas”.
O objetivo do Vatileaks, criado na estrutura do Vaticano, era, mais do que corrigir erros graves, atingir o cardeal Bertone, secretário de Estado — uma espécie de primeiro-ministro do poder imperial da Igreja Católica. A renúncia e a aposentadoria de Joseph Ratzinger, um intelectual altamente preparado e um homem íntegro, tem a ver com os vazamentos e, sobretudo, com a ideia cristalizada de que, embora fosse rigoroso, havia perdido o controle do poder. Alguma coisa, até muitas coisas, estava ocorrendo à sua revelia. Em 2013, deixou o comando da Igreja Católica.
Mais durão do que parece
A julgar pelas aparições públicas e pelo que publicam os jornais e revistas, Francisco é um homem “doce” e “afável”. É, sem dúvida. Entretanto, para presidir uma organização religiosa universalizada, um verdadeiro império transnacional, é preciso ser rigoroso. “Intramuros”, sublinha Alexander Stille, “tem fama de durão”.
Numa entrevista à Civiltà Cattolica, o papa disse que é “um pouco ingênuo”, ressalvando que é “um pouco furbo”, isto é, “astuto, esperto, malandro”. Uma contradição? Na verdade, não. Jorge Mario Bergolio está sugerindo que é possível ser “bom” (os bons tendem a ser tratados como ingênuos), pensar no bem da Humanidade, e, ao mesmo tempo, saber o que está acontecendo e decidir com pulso de ferro.
O cardeal australiano George Pell, secretário de Economia do Vaticano, assumiu com carta branca para reorganizar as finanças da Igreja Católica no mundo, não apenas na Itália. Havia certo amadorismo insensato na condução da política econômica dos empreendimentos do Vaticano. De imediato, George Pell contratou um executivo, Danny Casey, para gerenciar as finanças do império. A equipe montada pelo dois entrou em contato com consultores internacionais “para tomar pé das embaralhadas finanças do Vaticano”.
McKinsey, Deloitte e EY têm contribuído para o reordenamento financeiro. Alexander Stille conta que “padronizaram os procedimentos contábeis, identificaram os ativos de maior valor e puseram uma série de pequenas propriedades e instituições do Vaticano sob o controle direto da Santa Sé, a entidade legal que comanda o Vaticano e certas instituições em Roma e nos arredores da cidade. Em 2015, o novo Secretariado anunciou ter identificado 1,2 bilhão de dólares em ativos financeiros que nunca constaram do balanço do Vaticano”.
O caos era imenso. Informaram a Danny Casey que “a Santa Sé compreendia 65 instituições diferentes”. “Verificamos que são 136”, afirma o executivo. 71 a mais. “Todas as instituições do Vaticano têm sido solicitadas a se adaptar aos padrões internacionais de contabilidade e supervisão, e seus administradores — padres e freiras, em muitos casos — recebem treinamento básico em ciências contábeis”, informa a reportagem da “New Yorker”.
Os novos executivos, experimentados na área financeira, descobriram que a gestão fragmentada dos bens do Vaticano prejudica seus negócios — daí os ralos financeiros. Os gerentes instituíram o “princípio dos quatro olhos”. Para eliminar os feudos internos, “todas as decisões financeiras precisam ser examinadas por duas pessoas”.
“Estima-se que a Igreja Católica seja dona de 20% dos bens imóveis de toda a Itália e de 25% dos imóveis em Roma”, revela Alexander Stille. “Estima-se que a Propaganda Fide, ou Sagrada Congregação para a Evangelização dos Povos, a entidade do Vaticano que patrocina missões religiosas no exterior, seja proprietária de 10 bilhões de dólares em bens imóveis, concentrados sobretudo em Roma e dos quais fazem parte algumas das mais belas edificações históricas da cidade”, escreve o jornalista.
Alguns aluguéis estariam com preços inferiores aos praticados pelo mercado italiano. “O estilista Valentino”, segundo relato do cardeal Bertone ao repórter, “pagava um aluguel bem abaixo do mercado por sua loja principal, localizada na elegante via del Babuino, num dos bairros mais caros de Roma”. O porta-voz do estilista contesta e garante que “paga aluguel de mercado e jamais recebeu favores”.
As medidas, de acordo com a reportagem de Alexander Stille, estão dando resultado. Desde a posse do papa Francisco, em 2013, caiu o número de “atividades suspeitas”. Alexander Stille relata que, “numa investigação da polícia italiana sobre corrupção em Milão, uma escuta gravou um importante político se queixando da nova atmosfera no Vaticano: ‘Não há proteção no Vaticano, porque o novo papa não dá a menor bola para o mundo italiano e, entre os cardeais, já não tem ninguém que possa oferecer proteção’”. O papa não se deixa contaminar pelo mundo da política e das finanças da Itália.
As medidas de contenção do papa Francisco têm um objetivo: gerar mais receita. “Fazer mais dinheiro com nossos ativos, para que a gente possa fazer o bem em maior escala”, assegura o gerente Danny Casey. Depósitos e ativos do Banco do Vaticano somam 6 bilhões de dólares. “Os ativos em bens imóveis da Igreja Católica no mundo todo já foram estimados em 3 trilhões de dólares, soma comparável ao Produto Interno Bruto da Rússia, da Índia ou do Brasil.”
Os reformadores financeiros da Igreja Católica sugerem a criação de uma organização, com o nome de Gerenciamento de Ativos do Vaticanos, para gerir os múltiplos empreendimentos do império.
Especialista em assuntos do Vaticano, o jornalista Piero Schiavazzi percebe que “há uma luta em curso entre as mentalidades mais capitalistas, como a do cardeal Pell, e os que querem algo diferente. Os primeiros são a favor de operar dentro do sistema capitalista e fazer tanto dinheiro quando possível para viabilizar as boas ações. O outro grupo, que talvez conte com a simpatia de Francisco, acredita que o Vaticano deve usar seu dinheiro para mudar o sistema, isto é, investir diretamente em países pobres e mudar sua estrutura”.
O papa Francisco, em julho de 2015, endossou as ações dos novos gerentes: “Não tenhamos medo de dizer: queremos mudança, mudança de fato, mudança estrutural”. Ao mesmo tempo, condenou o sistema capitalista, que, na sua opinião, “impôs a mentalidade do lucro a qualquer preço, sem nenhuma preocupação com a exclusão social ou com a destruição da natureza”. Retórica? Em parte, sim. No geral, homem sincero e realista, o papa pensa mesmo mais nos pobres.
O papa Francisco critica o capitalismo, até com certa acidez, mas está conduzindo uma operação altamente capitalista para tornar a Igreja Católica mais rentável. O objetivo final é nobre: aplicar mais dinheiro no social. Mas de maneira organizada, sem ralos financeiros. “Francisco tem trabalhado arduamente para modificar o consenso no interior da Igreja, em vez de impor a mudança”, anota Alexander Stille. É possível que tenha avançado mais em economia do que na mudança de mentalidade. Neste sentido, parece que é mais hábil que João Paulo I.