PorDaniel Fich
A reforma protestante foi tão impactante que, segundo Frederick Eby, “nenhum aspecto da vida humana ficou intato, pois abrangeu transformações políticas, econômicas, religiosas, morais, filosóficas, literárias e nas instituições, de caráter definitivo; foi, de fato, uma revolta e uma reconstrução do Norte”.
Mas o que foi a reforma protestante?
A reforma protestante refere-se ao movimento religioso interno, com o objetivo inicial de reformar a Igreja Católica Romana, mas como foram expulsos e por terem resistido a contra-reforma (Concílio de Trento), o movimento resultou no fato histórico que deu nascimento aos cristãos “reformados”, conhecidos até hoje como “protestantes” e tem seu principal expoente no monge agostiniano Martinho Lutero.
Tanto os precursores (aqueles que antecederam aos reformadores), como os reformadores eram homens cultos, de vida exemplar, que tinham prazer na leitura e na exposição da Bíblia Sagrada e queriam fazer alguma coisa para alcançar a salvação, exatamente como a Bíblia afirma: “Pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie” (Efésios 2.8,9).
Os principais precursores da Reforma foram John Wycliffe, professor na Universidade de Oxford na Inglaterra; John Huss, professor na Universidade de Praga, que foi queimado por causa de sua fé; e Girolano Savonarola, monge dominicano que foi enforcado e queimado por ordem do Papa Alexandre VI em Florença, na Itália. Foram mortos porque discordavam das ações e ensinos da igreja, por considerá-los incompatíveis com os ensinos das Escrituras Sagradas. No cárcere, já sentenciado para ser queimado vivo, John Huss disse: “Podem matar o ganso (em sua língua natal, huss é ganso), mas daqui a cem anos, Deus suscitará um cisne que não poderão queimar”.
No século XVI a Europa estava no limiar de uma nova época política e social. Gutemberg revolucionara o processo de impressão de livro; Colombo descobrira a América e o descontentamento com a igreja persistia. Tudo isso preparava o terreno para a reforma. No dia 31 de outubro de 1517, cento e dois anos após a morte de John Huss, Martinho Lutero fixa na porta da igreja do castelo de Witenberg as suas 95 teses. Evidentemente outros homens foram extremamente importantes para a reforma e seus efeitos, tais como, Úlrico Zwinglio, Guillherme Farel, João Calvino e John Knox, no entanto para esse breve artigo, nos deteremos em pequena parte dos escritos e contribuições de Martinho Lutero.
Teologicamente, as 95 teses de Lutero fundamentam-se em cinco pilares, também conhecidos como os cinco solas da reforma. Sola fide (somente a fé), Sola gratia (somente a graça), Solus Christus (somente Cristo), Sola scriptura (somente a Escritura) e Soli Deo gloria (glória somente a Deus).
No entanto, apesar dos objetivos nitidamente bíblicos, a reforma não limitou-se ao aspecto religioso, tendo exercido profundo impacto na educação dos países onde foi implantada, influência que perpetua-se no tempo até os dias de hoje.
Instruído de modo severo, em um contexto em que a igreja só educava nobres, Martinho Lutero estava consciente de que a alfabetização dos camponeses pobres, seria um fator imprescindível para a evangelização dos povos. Com essa visão, consequentemente a Reforma Protestante exerceu grande pioneirismo ao popularizar o ensino através da abertura de escolas populares onde se passou a oferecer ensino gratuito.
Os escritos mais pragmáticos de Lutero sobre a educação foram: Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha, para que criem e mantenham escolas cristãs, publicado em 1524, e Uma prédica para que mandem os filhos para a escola, de 1530.
Neles, estão afirmações sobre a necessidade urgente de uma ampla ação em favor da educação do povo. Lutero objetiva estimular e desafiar a sociedade para a responsabilidade com a educação e a formação da juventude. “O desenvolvimento de um indivíduo temente a Deus, responsável e ético, com capacidade de vivenciar sua liberdade, requer pessoas bem instruídas”, dizia Lutero.
No entanto, talvez o mais importante nos escritos de Lutero sobre educação para a atualidade esteja em sua concepção de uma educação pública, universal e gratuita para quem não pode custeá-la. Nesse sentido, acertadamente Lorenzo Luzuriaga vê na Reforma a gênese da educação pública. (LUZURIAGA, 1959, p. 5).
Lutero, adiantado em seu tempo, não apenas defende o acesso à educação para todos, mas contribui com importantes escritos sobre o processo pedagógico, defendendo, em meio a um tempo de educação opressora, uma “perspectiva construtivista e lúdica.”
Apontando para uma educação integral, ele afirma que:
Pela graça de Deus, está tudo preparado para que as crianças possam estudar línguas, outras disciplinas e História, com prazer e brincando. As escolas de hoje já não são mais o inferno e o purgatório de nosso tempo, quando éramos torturados com declinações e conjugações. Não aprendemos simplesmente nada por causa de tantas palmadas, medo, pavor e sofrimento. Se levamos tanto tempo para ensinar às crianças jogos de tabuleiro, cantar e dançar; por que não usamos o mesmo tempo para ensiná-los a ler e outras matérias? Eles são jovens e têm tempo, são capazes e têm vontade. Falo por mim mesmo: se eu tivesse filhos e tivesse condições, não deveriam aprender apenas as línguas e História. Também deveriam aprender a cantar e estudar Música, com Matemática (LUTERO, 2000a, p. 37-38).
A Reforma tornou-se a primeira escola do povo alemão e impulsionou a educação pública. Lutero desafiou as sociedades de então para a responsabilidade com a educação e a formação da juventude. Não se tratava de uma educação apenas direcionada para a formação de quadros para a igreja, mas de uma educação que objetivava a formação integral do ser humano. Tratava-se de uma educação que significava um processo de humanização do ser humano, uma forma de tornar o ser humano mais humano.
Sem esquecer que a família tem papel fundamental no desenvolvimento da criança, em sua luta para que o povo tivesse acesso à formação intelectual, Lutero exigiu do Estado a responsabilidade educacional dos meninos e meninas.
A grande tarefa dessa escola era a formação de pessoas éticas e com capacidade para organizar o convívio social, político e econômico segundo critérios bíblicos de justiça, honestidade e retidão, para que cada comunidade e cidade se organize de tal forma que todos tivessem acesso à educação e a um trabalho que permitisse o acesso ao pão de cada dia.
Com suas críticas e propostas educacionais, Martinho Lutero vislumbrou e projetou a ética e a cidadania como lugares privilegiados da educação e defendeu a necessidade de aprofundar a democratização da educação em todos os níveis. Sua perspectiva não se limitou a uma educação religiosa com vistas somente a dimensão espiritual, por isso dizemos que, a educação defendida por Lutero carrega uma profunda dimensão de cidadania.
A contribuição da Reforma Protestante para a popularização da educação é inegável, pois essa não estava somente preocupada com a formação espiritual do indivíduo, mas buscava também fornecer-lhe uma base cultural sólida visando contribuir para que o mesmo pudesse ser útil não somente ao serviço sagrado, mas também à sociedade que é o lugar onde alcança sua realização cultural.
Em síntese, a historiografia educacional tem em Lutero uma referência importante para a concepção de educação pública e popular e sua inseparabilidade da ética e da cidadania, embora, infelizmente nem sempre seja reconhecido com tal.
Assim como Lutero, acreditamos que Fé, educação e cidadania pertencem uma à outra e não se realizam independentes e em tempos em que a pauta de algumas instituições de ensino dedica mais atenção a ideologia de gênero do que à matemática, português e ciências, faz muito bem resgatar os ideais de Lutero, tais como ética e cidadania na educação.
Publicado em Gospel Prime