A identidade do Rei da Babilônia em Isaías 14:12-15 e do Rei de Tiro em Ezequiel 28:11-19 segundo a tradição cristã
A identidade dos reis da Babilônia e de Tiro nos textos anteriormente mencionados também tem sido um tema recorrente na tradição cristã, sobretudo nos escritos dos chamados “pais da Igreja”. Entretanto, pelas razões já mencionadas, nos limitaremos a apresentar apenas alguns excertos sobre a temática em estudo.
Orígenes (182-254 d.C.)
Ao que parece, Orígenes (185-254 d.C.) foi o primeiro a associar os reis da Babilônia (Cf. Isaías 14:12-15) e de Tiro (Cf. Ezequiel 28:11-19) à figura de Satanás. Em sua obra De Principiis, Livro I, Capítulo 5, § 5, declara:
Nós temos demonstrado, então, que o que citamos com relação ao príncipe de Tiro a partir do profeta Ezequiel [Ezequiel 28:11-19] se refere a um poder adverso e por isso é mais claramente provado que aquele poder foi outrora santo e feliz; do qual estado de felicidade ele caiu a partir do momento em que a iniquidade foi encontrada nele, e foi arremessado à terra, e não foi tal por natureza e criação. Somos da opinião, portanto, de que estas palavras são ditas de um certo anjo que havia recebido o ofício de governar a nação dos tírios e para quem também as suas almas haviam sido confiadas para serem cuidadas […]. Mais uma vez, somos ensinados do seguinte modo pelo profeta Isaías a respeito de outro poder adversário. O profeta diz, ‘Como Lúcifer, que costumava surgir pela manhã, caiu do céu!’ [Isaías 14:12] […]. Mais evidentemente por estas palavras ele está demonstrando ter caído do céu aquele que antes era Lúcifer, e que costumava surgir pela manhã. Se, pois, como pensam alguns, ele possuía uma natureza de trevas, como se diz que Lúcifer existia antes? Ou como poderia surgir pela manhã aquele que em si mesmo nada tinha de luz? Ou melhor, até mesmo o próprio Salvador nos ensina, dizendo do diabo, ‘Eis que vejo Satanás cair do céu como um raio’ [Lucas 10:18]. Por um momento ele foi luz. (ROBERTS & DONALDSON, 1869, p.51-52).
Orígenes pertencia à escola de interpretação bíblica “alegórica” de Alexandria, no Egito, cujo método interpretativo “tenta ir além do significado óbvio da superfície [do texto] e busca significados ‘mais profundos e ocultos'”.16 Tal abordagem foi o principal método de interpretação bíblica usado pelos cristãos ao longo de toda Idade Média.17 Uma vez que Orígenes, em sua metodologia hermenêutica, via um sentido tríplice na Bíblia, a saber, literal, moral e espiritual/alegórico,18 isso explica o por quê de ele ter visto uma alusão à queda original de Satanás por trás da queda dos reis da Babilônia e de Tiro, em Isaías 14:12-15 e Ezequiel 28:11-19.
Tertuliano (160-220 d.C.)
Tertuliano, em sua obra Contra Marcião, Livro V, Capítulo 12, assim se refere à identidade do arrogante personagem retratado em Isaías 14:13-14:
“Eu estabelecerei o meu trono [acima das estrelas… Eu subirei] acima das nuvens; Eu serei semelhante ao Altíssimo”. Istodeve significar o diabo […].(DONALDSON, 1868, p.459).
Observa-se novamente que Tertuliano, em seu lacônico mas incisivo comentário sobre Isaías 14:13-14, ecoa o pensamento de Orígenes quanto ao significado alegórico dessa passagem bíblica.
Agostinho (354-430 d.C.)
Agostinho, em sua obra A Cidade de Deus 11:15, assim se pronuncia sobre a identidade dos reis da Babilônia e de Tiro:
Tanto […] Isaías […] representa o diabo sob a pessoa do rei da Babilônia: “Como tu caíste, ó Lúcifer, filho da manhã!” [Isaías 14:12], [quanto] o que Ezequiel diz: “Tu estavas no Éden, o jardim de Deus; toda a pedra preciosa era a tua cobertura” [Ezequiel 28:13] […]. (AGOSTINHO, 1994, p.359).
Deve-se lembrar que para este importante pensador do Cristianismo antigo, a Bíblia possuía um sentido quádruplo: literal; alegórico; tropológico ou moral; e anagógico.19 Some-se a isto ainda o fato de Agostinho entender que foi o orgulho o principal motivo da queda original do diabo.20 Desse modo, o orgulho dos reis da Babilônia e de Tiro e suas respectivas quedas descritas em Isaías 14:12-15 e Ezequiel 28:11-19 serviram-lhe de arquétipo para o orgulho e a consequente queda original de Satanás.
Cirilo de Jerusalém (313-386 d.C.)
Cirilo de Jerusalém, em suas Catequeses II:4, assim interpreta Ezequiel 28:12-13:
Embora ele fosse um arcanjo, ele foi posteriormente chamado diabo […], ele foi posteriormente corretamente chamado Satã, pois Satã é interpretado “o Adversário”. Isto não é o meu ensino, mas aquele do inspirado profeta Ezequiel. Pois, tomando um lamento contra ele, diz: “Você era o selo da semelhança, e a coroa da beleza; você foi gerado no Paraíso de Deus” […]. (MCCAULEY & STEPHENSON, 1969, p.98).
Embora o método de interpretação da Escritura de Cirilo tivesse mais em comum com a escola de Antioquia da Síria21 (que prezava pelo sentido literal do texto) do que com a escola de Alexandria, no Egito (que enfatizava o seu sentido alegórico), todavia, este último prevaleceu em sua leitura de Ezequiel 28:11-19. Esse fato demonstra a tamanha influência que a interpretação alegórica da Bíblia exerceu sobre a Antiguidade, inclusive sobre aqueles que, como Cirilo de Jerusalém, tendiam a interpretá-la de modo mais literal.
Hipólito de Roma (170-236 d.C.)
Hipólito, em seu Tratado Sobre Cristo e o Anticristo 52-53 identifica os reis de Tiro e da Babilônia como segue:
[…] ele [o Anticristo] começará a se apresentar como Deus, como Ezequiel predisse: “Porque o seu coração elevou-se, e você disse, eu sou Deus” (Ezequiel 28:2). E Isaías também:
“Você disse em seu coração, eu subirei ao céu, Eu estabelecerei o meu trono acima das estrelas dos céus. Eu serei como o Altíssimo. Mas agora você será derrubado ao inferno (Hades), para os fundamentos da terra” (Isaías 14:13-15). Semelhantemente também Ezequiel: “Você ainda irá dizer para aqueles que te destruíram, eu sou Deus? Mas tu és homem, e não Deus” (Ezequiel 28:9). (PATMORE, 2012, pp.58-59).
O Anticristo, que segundo a concepção cristã tradicional é “um indivíduo mal da escatologia apocalíptica que surgirá nos últimos dias como um oponente de Cristo”,22 seria, de acordo com Hipólito, um imperador romano.23 Assim, Hipólito diverge da opinião de seus predecessores, ao associar os reis da Babilônia (de Isaías 14:12-15) e de Tiro (de Ezequiel 28:11-19) a um ser humano e não a um ser angelical.
Jerônimo (347-420 d.C.)
Por fim, Jerônimo, ao verter Isaías 14:12 do hebraico para o latim, nos apresenta aquela que é a tradução mais famosa e controversa de Isaías 14:12:
Como caíste do céu, ó Lúcifer, filho da manhã! Como foste lançado por terra, tu que enfraquecias as nações! (JÁNOS II, 1979).
Aqui, Jerônimo traduziu o substantivo hebraico hêlêl, “brilhante”,24 pelo latim lucifer, derivado de lux, lucis, “luz” e fero, de ferre, “trazer”, ou seja, “aquele que traz a luz”.25 Na Vulgata, esse termo que aparece ali ao todo cinco vezes nunca é utilizado para referir-se a um “ser angelical”, mas quase sempre a “astros luminosos da esfera celeste”. Vejamos as referências bíblicas a esse respeito: (1) Jó 11:17: (heb.) bôqer, “manhã”; (lat.) lucifer, “estrela da manhã”; (2) Jó 38:32: (heb.) mazzârôt, “constelações”; (lat.) luciferum, “constelações do zodíaco”; (3) Salmo 110:3: (heb.) mishhâr, “alvorada”; Salmo 109:3: (lat.) luciferum, “estrela da manhã”; (4) Isaías 14:12: (heb.) hêlêl, “brilhante”; (lat.) lucifer, “estrela da manhã”; e (5) 2 Pedro 1:19: (gr.) phôsphóros, “estrela d’alva”; (lat.) lucifer, “estrela d’alva”. Neste último caso, o termo lucifer é utilizado para referir-se a Jesus.26 Contudo, deve-se notar que o termo latino lucifer não é um substantivo que designa um nome próprio ou mitológico de alguém, mas sim um termo que designa algo, um astro luminoso.27 Sendo assim, o anjo do mal conhecido como Satanás jamais poderia estar associado a lucifer em Isaías 14:12.
Em seguida, apresentaremos os textos de Isaías 14:12-15 e Ezequiel 28:11-19 que nos foram transmitidos pela tradição massorética, tais como encontrados na Biblia Hebraica Stuttgartensia,28 e, depois disso, forneceremos também as nossas respectivas traduções e interpretações dessas passagens bíblicas.
Citações:
16 XUN, 2010, p.124. Os acréscimos entre colchetes são nossos.
17 MCKIM, 1998, p.60.
18 ZUCK, 1991, p.36.
19 DOCKERY, 2004, p.122. McGrath define o sentido anagógico de interpretação bíblica Agostiniana em termos escatológicos como “aquilo que os cristãos deviam esperar” para o futuro. (Cf. MCGRATH, 2011, p.132).
20 KELLY, 2001, p.53.
21 YARNOLD, 2000, p.56.
22 REDDISH, Mitchell G. Antichrist. In: MILLS, 1990, p.34.
23 VAN PEURSEN & DYK, 2011, p.201.
24 BROWN, DRIVER & BRIGGS, 1951, p.237.
25 BUENO, 1966, p.2226.
26 NEYREY, 1993, p.183.
27 Tauchnitz omite o nome de lucifer de sua lista de nomes próprios históricos e mitológicos em latim, simplesmente por entender que esse vocábulo não é o nome próprio de alguém. (Cf.
TAUCHNITZ, 1910, p.120,165-176).
28 ELLIGER & RUDOLPH, 1997. 29 Texto Massorético.