“NeoLogos” do “PróLogo” de João

Não é um neologismo. A intenção do título é chamar atenção para o que está escrito no prólogo de João, o seu sentido único e imutável. Os homens mudaram o significado do Logos (grego para palavra) ao longo da história. Por isso, o “neo” do título não signfica algo novo. “NeoLogos” é o resgate que podemos fazer em nossos dias do verdadeiro Logos. O Logos não é Jesus, como tantas vezes foi defendido ao longo da história. Logos é apenas a Palavra de Deus, a mensagem de salvação. Certamente, não vamos apresentar algo novo, vamos restituir o sentido do antigo, o original.

Os Pais da Igreja confundiram o Logos (palavra de Deus) com Jesus. Ele nunca foi a palavra de Deus, Jesus foi aquele homem, profeta, messias, filho de Deus, prometido para anunciar de forma completa toda a palavra de Deus. Os leitores da Bíblia, influenciados por uma interpretação histórica de João 1, leem como se um Verbo (forma de pessoa celestial) tivesse descido à terra em forma de pessoa carnal. Ou seja, no sentido literal, o que não é correto. O que desceu do céu foi a mensagem divina (Verbo) ao encontro de Jesus, que, por sua vez, divulgou a mensagem. Logos é a palavra, a mensagem, Jesus foi quem anunciou esta mensagem.   

Este artigo procura esclarecer o texto bíblico que mais tem gerado controvérsias no cristianismo: João 1:1-18. A posição aqui desenvolvida não encontra correspondência no meio cristão. Mesmo assim, há razões suficientes para manter o entendimento. Alguns estudiosos e grupos ao longo da história defenderam posições próximas, mas sempre mantendo a ideia de que Jesus é o Verbo[1]. Ao contrário, este artigo defende que Jesus não é o Verbo. O Verbo é apenas a ordem, comando, que manifesta a sabedoria de Deus no ato criativo. No geral, os teólogos cristãos defendem que o Verbo corresponde a Jesus, fazendo dele um Deus. Essa afirmação é falsa. A afirmação de que Jesus é o Verbo se tornou a maior cilada do cristianismo. A verdade é que Ele foi um homem igual a todos, exceto por seu nascimento especial e por sua vida de santidade.

Que Jesus é um homem natural, foi a história comum durante o tempo da igreja primitiva. Com o passar dos apóstolos e com a presença de pessoas influenciadas pela filosofia, começou a se desenvolver uma ideia de que Jesus não era carne como todos nós. Na opinião delas, Jesus não tinha ancestralidade humana, sendo apenas uma manifestação demiúrgica. Mas este tema rapidamente deu lugar a outra discussão: qual era a natureza da relação do Cristo Deus com o Cristo homem? A partir de então, o cristianismo se tornou o campo da batalha cristológica. Não demorou muito para que o verdadeiro Jesus ficasse escondido no passado e os homens perdidos na discussão cristológica.

Por quê? Porque os dois lados da discussão haviam se desviado do foco e haviam perdido a razão. E quando isso acontece, o debate se torna interminável. A mais famosa batalha desta guerra aconteceu entre Ário e Atanásio no século IV. O primeiro defendia que Jesus foi criado em algum tempo no passado eterno. O segundo, que Jesus sempre foi Deus em toda a eternidade igual ao Pai. Nem uma e nem outra afirmação é a verdade.

Esta longa e milenar guerra cristológica nunca esteve perto da realidade apresentada no texto de João 1:1-18. Nos comentários abaixo, será mostrado que não foi propósito do apóstolo João falar de um Cristo Deus, mas apenas da Palavra de Deus. Será mostrado que este texto conta a história de como a Palavra de Deus (mensagem de salvação) saiu do céu e chegou ao mundo. Foi uma mensagem, uma informação, um ensino, uma doutrina, que veio do céu em forma de Palavra (Verbo), não um ser em forma de homem. Foi a palavra criadora de Deus que desceu do céu ao encontro do mundo para realizar mais uma de suas missões. Ela veio trazer a vida para os homens, mas eles “não a receberam”.  

O Evangelho de João segue em todo seu contexto reafirmando a ideia principal apresentada no prólogo: que a Palavra de Deus desceu do céu para dar vida aos homens. O prólogo apresenta quatro momentos deste fenômeno. Primeiro, a Palavra está em Deus; em segundo momento está com João Batista; depois no mundo e, por fim, com Jesus em toda sua plenitude. A Palavra não desceu em forma de carne, ela desceu para as pessoas que são carne pudessem ouvi-la, em especial para o homem Jesus Cristo. Deus batizou Jesus com seu espírito, instruindo-o a cada dia de sua vida. Com isso, Jesus foi o homem que alcançou a máxima compreensão sobre Deus. Neste sentido, foi o único que O “viu”. Daí, é possível dizer que a Palavra de Deus desceu do céu aos homens porque primeiramente desceu para Jesus, entrando em seu coração e preparando-O para ser o Cristo. O Evangelho de João foi escrito para provar que Jesus é o Cristo, aquele que recebeu (entendeu) a Palavra que veio do céu e tinha a missão de repassar este conhecimento a todos os homens.

O Evangelho de João não quer provar que Jesus é o Verbo, consequentemente que Ele é Deus. O Verbo não é uma pessoa, não é Jesus. O Verbo é simplesmente a Palavra de Deus. Mais simplificadamente e “no princípio” o evangelho da salvação.

Importante: De ora em diante, usaremos o termo Palavra no lugar do Verbo, ou Logos, para facilitar a nossa explicação. Sabemos que são termos equivalentes e que não altera o sentido. Manteremos a inicial com letra maiúscula apenas para frisar sua importância, não porque entendemos que o Verbo é um ser pessoal. Assim, também como o uso do termo Logos em algum momento.

Divisões contextuais

Antes de mais nada, vamos dividir o texto de João 1:1-18 em pequenos contextos para facilitar o entendimento. Cada um destes contextos contém uma ideia que comanda de forma lógica o sentido do contexto posterior. São quatro:

1 a 5: A origem da Palavra,

6 a 8: A Palavra é a luz do mundo,

7 a 14: Os efeitos da Palavra,

14 a 18: A plenitude da Palavra.

Nestes 18 versículos, a história de como a Palavra de Deus saiu do céu e chegou ao mundo de forma plena é dividida em quatro atos. No primeiro ato, Deus é a fonte da Palavra, ela “era Deus”, “nEle estava” e dEle saiu; no segundo ato, a Palavra é a luz dos homens, isto é, um ensino, uma instrução, uma doutrina, um conhecimento; no terceiro, ato, a Palavra transformou os homens do mundo em novos homens, “filhos de Deus”; no quarto ato, a Palavra se fez plena na pessoa de Jesus. Estes quatro contextos são os subtemas do assunto geral. Vamos compreendê-los.

A origem da palavra

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. João 1:1-5

1. Explicações iniciais: Estes cinco primeiros versículos descrevem a origem da Palavra e o que ela é. Os teólogos entendem que se trata de Jesus. Mas isto não está correto. Nenhuma vez o termo Jesus é mencionado nestes versos. O objeto deste texto é a Palavra, não Jesus.

O sentido de um texto é definido por seu vocabulário e seu contexto. Se falamos sobre uma floresta, uma palavra-chave é árvore. Se falamos sobre saúde, o contexto deve conter palavras como bem-estar e medicina. Se falamos sobre política, as palavras que dominam o vocabulário são votos, partidos e eleitores. Assim, não faz sentido atribuir o texto de João 1:1-18 a Jesus, sendo que o termo central do assunto é a Palavra. Jesus é mencionado apenas no verso 17 na condição de ideia em terceiro plano. Jesus não é o assunto dos versos 1 a 5. O assunto deste pequeno contexto é a Palavra.

2. No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era DeusTodas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Ele estava no princípio com Deus:  No verso 1 é apresentada uma ideia única: o lugar que a Palavra se encontra é Deus. A Palavra é o comando, a ordem que flui da “boca de Deus” para criar, salvar, curar etc. No princípio, esta Palavra só poderia estar em Deus e ser Deus, porque nada existia fora de Deus. Ela não é um ser separado de Deus, chamado Jesus. Há uma enorme diferença entre Jesus e a Palavra. Jesus é o homem que ensinou a Palavra de Deus. A Palavra é o que Deus falou e Jesus ouviu.

No princípio[2], “era” e “estava”: indica um momento, um lugar e um estado da Palavra. Neste momento nada existia fora de Deus. Tudo o que era, era Deus. Fora de Deus nada era possível, nem tempo, nem espaço. Por isso, até mesmo a Palavra não podia estar fora de Deus. A Palavra era inerente a Deus. Só podia existir integrada e condensada em Deus, era Deus. Esta Palavra era tão Deus que se pudéssemos voltar no tempo, ao “princípio”, entraríamos em Deus. O termo “princípio” aqui é uma clara indicação de que antes de todas as coisas serem criadas, só existia um lugar, Deus. Então, qualquer coisa que surgisse, surgiria de Deus e antes de surgir era Deus e estava com Deus. E assim foi até o dia em que ela criou a primeira coisa fora de Deus.[3] A Palavra se origina em Deus e toda criação existe através dela.

Com estas proposições, João quer dizer que a origem/fonte de autoridade por trás da mensagem do evangelho que Jesus pregou era única e divina. Não era uma palavra que se originou em algum momento da história a partir de um anjo, profeta, filósofo, ou qualquer outro homem iluminado. O esforço de João se evidencia pelo fato dele afirmar duas vezes que a palavra “estava com Deus”. Ele não quer deixar dúvidas sobre a origem dos ensinos de Jesus. Tanto que a autoridade divina será invocada em vários momentos da narrativa joanina.

3. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam: Se nos versos 1 e 2, João tratou do local onde a Palavra se encontrava, aqui ele trata do conteúdo. O que encontramos naquela Palavra que estava com Deus? A vida. Por isso, à medida que a Palavra de Deus era revelada, mais entendimento (“luz”) sobre a vida chegava aos homens.

Neste texto, a “luz” é uma figura de linguagem para representar o conhecimento sobre Deus. Em outras palavras, o texto está informando que a Palavra contém as revelações de Deus aos homens. Porém, não era possível ao homem compreender a voz (Palavra) divina, por uma simples razão: a dimensão de Deus não é a mesma dimensão humana. Deus está num ambiente espiritual e o homem num ambiente material. Fazia-se necessário criar uma ponte entre os dois espaços, o divino e o humano. Deus precisava falar diretamente com a sua própria criatura. A Palavra precisava sair céu e descer ao mundo. A Palavra precisava ganhar materialidade humana para ser compreensível. Para realizar tal desígnio, Deus já tinha um projeto traçado antes da criação. Este projeto seria realizado através de um homem. Através dEle a Palavra seria plenamente revelada.

Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens”. Ou “nela” (tradução mais original), está indicando que a Palavra de Deus contém a vida. A Palavra de Deus é a instrução (“luz”) para a vida eterna. O evangelho foi o processo de comunicação da vida aos homens. Compreender a Palavra de Deus é ser iluminado, com isso têm-se acesso à vida eterna. Mas, nem todos os homens são capazes de alcançar esta graça, pois o oposto da “luz” também atua, as “trevas”. Como este oposto significa a ignorância. A Palavra de Deus não é aceita por todos.        

4. Conclusões finais: O texto de João dos versos 1 a 5 apresentam duas ideias básicas: Primeira, que o local onde a Palavra estava era em Deus. Que ela é intrínseca a Deus. Portanto, a Palavra não é uma pessoa, uma outra entidade que também é Deus. A Palavra faz parte da única entidade que é Deus. A segunda ideia refere-se ao conteúdo da Palavra. Ela contém “luz”, uma instrução de Deus aos homens. Em outras palavras, a Palavra é a autorrevelação de Deus.  

Diante disso tudo, entende-se que Joao não quer mostrar que a Palavra é Jesus e, consequentemente, que Jesus é Deus. Jesus está fora da entidade Deus. Tão fora que a palavra Jesus nem aparece no texto. O texto de João 1:1-5 não fala de Jesus, como pensam os teólogos. Nada aqui o descreve. Jesus foi o meio usado por Deus para fazer sua Palavra chegar ao mundo. Portanto, Jesus e a Palavra de João 1:1 são sujeitos diferentes. Em analogia com a comunicação, a Palavra é o conteúdo e Jesus o canal.

O que devemos apreender destes cinco primeiros versos é que a Palavra de Deus estava em Deus, emanou dEle próprio. Em outras palavras, o apóstolo João está dizendo que Deus é a única fonte possível da Palavra, ou melhor, dos ensinos de Jesus. Também, assim como a Palavra criou todas as coisas, isto é, dando vida a elas, a vida está nela. Esta é a mesma Palavra de vida que João comenta em sua primeira carta, chamando-a de o Verbo da vida, (I João 1:1-2).   

A Palavra é a luz do mundo

Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João. Este veio para testemunho, para que testificasse da luz, para que todos cressem por ele. Não era ele a luz, mas para que testificasse da luz. João 1:6-8

1. Explicações iniciais: A ideia contida nos versos 6 a 8 é uma evolução natural da ideia inserida nos versos 1 a 5. A primeira parte apresentou a Palavra na sua origem, que é Deus. A segunda parte apresenta a Palavra no seu destino, o mundo. A Palavra (vida, luz) que estava no princípio[4] com Deus no céu, está agora com os homens no mundo. Muitos profetas ensinaram sobre Deus, mas nenhum deles fez isso plenamente. João Batista era o maior e o mais iluminado dos profetas, falava da eminente chegada do reino de Deus ao mundo, mas nem ele sabia tudo sobre Deus. A plenitude do conhecimento e do ensino seria alcançada somente com as pregações de Jesus. Jesus foi o único homem que “subiu ao céu” (Jo: 3:13), isto é, aprendeu tudo de Deus. O contexto dos versos 6 a 8 nos mostra que a Palavra, a plena mensagem divina, estava chegando ao mundo. João Batista testemunhava disso. O Evangelho de João é a história de como a palavra de Deus veio do céu ao encontro dos homens através das pregações de Jesus, não é a história de um deus que desceu do céu em forma humana.

2. A luz não é Jesus: De imediato, e isto é muito importante, como já comentado acima, o termo “Jesus” ainda não se fez presente no texto do verso 1 ao verso 8. Em regra, se determinada palavra não faz parte do vocabulário, não podemos considerar que o conceito por ela expressado seja parte integrante do assunto. Assim como não podemos associar termos como futebol, eletricidade, medicina ao assunto do capítulo 1 de João, porque estas palavras não estão presentes, também não podemos dizer que o texto trata do homem Jesus, pois também não está presente a palavra Jesus.

3. Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era João: Já, por outro lado, o termo “João” expressa uma ideia muito clara e indiscutível nos versos 6 a 8. Não há dúvida da presença do homem João na narrativa. As afirmações a favor de João são muito nítidas contra a completa obscuridade a favor de Jesus. Insistir que a Palavra é Jesus, que a luz é Jesus, que o texto fala dEle é apoiar uma inferência falsa.

4. Para que testificasse da luz: Depois que descreveu o que era a Palavra e sua origem em Deus, que ele continha a vida e que a vida era a luz dos homens, o evangelista apresenta o testemunho de João Batista sobre a luz. Importante: o testemunho é sobre a luz. Muitos, dominados por um pensamento preconcebido, de imediato associam a luz com Jesus – não sem motivo, pois n´outra situação Jesus declarou: “eu sou a luz”. Acontece que essa é uma inferência inadequada, pois a “luz” de João 8 tem o seu próprio contexto no qual deve ser avaliada. Nada garante que a luz de João 8 seja a mesma luz de João 1 e que por isso estamos nos referindo a Jesus.

Verifiquemos duas situações:

Primeiro: a palavra “luz” é usada na Bíblia com sentido de instrução, como por exemplo em Salmos 119:105 quando diz: “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para o meu caminho”. Jesus quando disse “eu sou a luz do mundo” (João 8:12) também usou no mesmo sentido, isto é, que Ele era aquele que iria instruir, iluminar o caminho e o mundo, por ser o grande Mestre vindo de Deus. De acordo com este emprego da palavra luz na Bíblia, João, o evangelista, está falando de uma coisa, o conhecimento, a instrução contida na Palavra, não de uma pessoa.

Segundo: João Batista era um grande profeta, com uma missão especial: testificar da eminente chegada da luz. João, o evangelista, afirma que João Batista não era a luz, mas que testificava da luz. João Batista fazia isso para que todos “cressem por ele”.

5. Para que todos cressem por ele: Obviamente, este “ele” não se refere a João Batista, mas à luz. Muitos pensam que o fato de João, o evangelista, afirmar que João Batista não era a luz, está dizendo por tabela que a luz é Jesus. Não é isto que o texto revela. Todos deveriam crer através daquela “luz” que estava chegando ao mundo. Esta luz estava na Palavra de Deus.

6. Dois testemunhos de João: São bem claros e distintos os dois testemunhos de João Batista, um sobre a luz, outro sobre Jesus. Os versos 6 a 8 apresentam o testemunho sobre a luz, os versos 20 a 27 sobre Jesus. Se a luz fosse Jesus, porque João, o evangelista, não falou isso de forma explícita nos veros 6 a 8? Nada o impediria de o fazer. Não fez porque não se trata de Jesus. Já, nos versos 20 a 27 ele narra que João Batista falou claramente que não era o Cristo, conforme lemos no verso 20: “E confessou, e não negou; confessou: Eu não sou o Cristo”. São bem claras e diferentes as expressões: João, evangelista falando sobre a luz: “ele não era a luz”; João Batista falando sobre o Cristo: “eu não sou o Cristo”. Cristo e a luz são coisas diferentes. O Cristo é o mestre, a luz é a instrução do mestre. As duas narrativas, uma sobre a luz, outra sobre o Cristo, são evidências claras de que a luz não se refere a Jesus. A luz é a instrução contida na Palavra de Deus. Os versos 6 a 8 são testemunhos sobre a luz, não sobre Jesus. Os teólogos misturaram tudo.

7. Conclusão: Para concluir, os versículos 1 a 5 falam da Palavra e a luz nela contida, os versículos 6 a 8 falam de João Batista testemunhando sobre a luz da Palavra. A primeira parte sobre a origem da Palavra, em Deus, a segunda parte sobre o testemunho da luz no mundo. Nada há, até o momento, a não ser uma inferência duvidosa, que possamos nos apegar para afirmar que a Palavra seja Jesus. João 1:1-18 é a história de como a mensagem de salvação chegou ao mundo, não há história de como um deus se tornou homem.       

O efeito da Palavra

Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo. Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que creem no seu nome; os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus. E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. João 1:9-14

1. Explicações iniciais: Este pequeno contexto é um subtema do tema principal. O tema principal é a história da Palavra vindo ao mundo. O contexto dos versos 9-14 é o efeito da Palavra no mundo. A Palavra é a luz (que instrui) a todo homem e é também aquela que criou o mundo. A Palavra “veio para o que era seu” (o homem), mas muitos deles não a receberam, apenas uma parte a aceitou. O efeito da Palavra chegar ao mundo foi separar os homens em dois grupos: os que creram e os que não creram. Este contexto continua expondo e ampliando as ideias contidas nos subtemas anteriores: a Palavra estava com Deus, veio ao mundo e agora está causando efeitos nos homens.

2. Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo: Ali, onde? Na Palavra. Conforme verso 4: “Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens”. “Que ilumina” significa que instrui, ensina. Em outras palavras, “todo homem que vem ao mundo” significa que ninguém que tenha tido contato com a Palavra, ficou sem o verdadeiro conhecimento. A Palavra, aqui no contexto de João, é a palavra de salvação contida no evangelho. Mas, a Palavra de Deus destinada a avisar o homem sobre a vida eterna já existia antes da proclamação do evangelho. Todos os homens, desde Adão até nossos dias, de alguma maneira tiveram contato com esta Palavra. Por isso, ela “ilumina”, isto é, instrui a todos os homens “que vem ao mundo”. E, a “luz verdadeira” que estava na Palavra, sem dúvida, é uma indicação contra qualquer outra filosofia humana. Somente os ensinos de Deus são os verdadeiros conhecimentos que podem levar o homem a um bem-estar espiritual e vida eterna.

3. Estava no mundo: Estava no mundo é uma oposição a “estava… …com Deus”, verso 2. Conforme nossa tese, João 1:1-18 se trata da história de como a palavra de Deus saiu do céu e desceu ao mundo. Antes estava em Deus, agora está no mundo.

4. E o mundo foi feito por ele: Esta frase é uma confirmação de que a Palavra se trata da Palavra de Deus que tudo criou, em acordo com o verso 3, mas agora se apresentando como palavra de salvação, palavra de vida. A Palavra sempre foi a criadora de todas as coisas. Primeiramente, ela criou o cosmo, terra e céu. Depois criou o homem e o espírito íntimo dele. Daí resultou o mundo no sentido cultural. Agora, através do evangelho, ela está remodelando o coração do homem. Isto resultará numa nova humanidade, e, por conseguinte, num novo céu e numa nova terra.

5. E o mundo não o conheceu: Ou seja, as pessoas não entenderam e acreditaram na palavra de Deus, a mensagem de salvação, o evangelho.

6. Veio para o que era seu, e os seus não o receberam: As pessoas deste mundo não receberam, ou não aceitaram a palavra de instrução do evangelho. O prólogo é uma síntese do que está narrado ao longo do Evangelho. Durante a leitura, deparamos várias vezes com situações em que as pessoas se dividem em relação às palavras de Jesus. Por exemplo: “Tornou, pois, a haver divisão entre os judeus por causa destas palavras”, (João 10:19). Vejam como é a palavra dita por Jesus, o evangelho, que causa divisão. Isto explica o porquê da referência no prólogo sobre a divisão em dois grupos, os que “o receberam” e os que “não o receberam”.  

7. Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus. Aos que creem no seu nome:  Mas, uma parte dos homens são aqueles que aceitaram a Palavra, a mensagem de salvação. Estes se tornaram filhos de Deus. Nasceram de novo, não de um nascimento natural, como pensava Nicodemos, mas nasceram do alto, de Deus, (João 3:3-7).

Este grupo de pessoas creu no poder da Palavra. O termo “nome” aparece na Bíblia associada a poder, autoridade vinda de Deus, como em Mateus 28:18,19.  Quando as pessoas recebem a palavra, elas creem no poder que esta palavra tem de realizar o que diz. As pessoas que creram, incorporaram a instrução da Palavra na mente e no coração. São várias as situações no Evangelho de João em que as pessoas creem em Jesus, ou na sua palavra, (João 4:41; 5:47; 17:20; 12:47; 17:8).

8. Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus: Se trata do novo nascimento, a nova pessoa que surge depois que conhece a Deus e acredita em sua Palavra. O homem está destinado a passar por duas mortes, a física e a espiritual. Para evitar a morte física, ele precisa passar pelo novo nascimento, que implica na morte espiritual. O primeiro nascimento é uma combinação aleatória de genes como resultado do desejo do homem, “vontade da carne”. O segundo nascimento se dá através da crença na palavra de Deus. Aquele que acredita é recriado, recebe uma nova vida, não “da vontade do homem”, “mas de Deus”. Elas são uma nova criatura, conforme II Coríntios 5:17. Se trata do homem no seu sentido espiritual.

9. E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade: Aqui se trata da humanização da Palavra que existia no princípio com Deus e era Deus. A Palavra de Deus que existia antes da criação n´outra dimensão estava, agora, na dimensão humana, “se fez carne”. Esta expressão não se trata da materialização de uma pessoa da divindade, como explicam os teólogos trinitarianos. Ela é uma expressão semita que em nossa linguagem moderna tem o mesmo sentido de humanidade. Na linguagem semita não existia uma palavra explicar o conceito ser humano e se usava o termo “carne” para indicá-lo. Por exemplo, quando Adão dava nome aos animais e percebeu que a mulher era semelhante a ele, então disse: “Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne...” (Gênesis 2:23). Outro exemplo, uma das qualidades do casamento foi expressa com a palavra carne: “...Portanto, deixará o homem pai e mãe, e se unirá a sua mulher, e serão dois numa só carne? Assim não são mais dois, mas uma só carne…” (Mateus 19:5,6) Obviamente, o casamento não faz do homem e da mulher uma mesma pessoa, mas faz deles um novo grupo da humanidade, uma nova família. A Palavra era Deus, ela não pertencia à categoria dos humanos, os homens eram sua criação. Relembrando que não estamos falando da Palavra como pessoa, mas como uma coisa, a mensagem de Deus, ou a voz de Deus. Ela estava numa dimensão não humana e precisava pertencer aos homens. A Palavra ao sair do céu e descer entre os homens, se fez humana, ou seja, se tornou compreensível aquilo que, talvez, somente as hostes celestiais poderiam ouvir. Em outras palavras, poderíamos dizer que saiu da “cultura celestial” e passou a fazer parte da cultura humana.

A frase “Cheio de graça e de verdade” caracteriza a plenitude da Palavra de Deus. De Moisés, passando pelos profetas, chegando até João Batista, a Palavra de Deus havia sido anunciada, mas não plenamente. A partir de Jesus toda a verdade e graça de Deus estava à disposição dos homens.

10. E vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai: A glória da Palavra é o peso que ela tem entre os homens. Glória vem do grego “doxa” cujo sentido, de forma estrita, significa peso, valor, importância, fama. Ver sua glória é conhecer a importância da Palavra de Deus para a humanidade. A conjunção “como” introduz uma ideia de comparação. A importância da Palavra é equiparada ao valor do filho único de um homem.

Algumas versões produzem um embaraço na mente do leitor, pois elas trazem a expressão “Deus unigênito” no lugar de “unigênito do Pai”. Com certeza, são versões tendenciosas que procuram reforçar a ideia de que Jesus é Deus. Também, o termo Pai com “P” maiúsculo não está corretamente ligado com o contexto. Pai aqui, como observamos se trata de um homem comum que foi utilizado em tom análogo. Pequenos detalhes como estes somados uns a outros produzem barreiras enormes ao entendimento do texto. Daí, a grande dificuldade dos teólogos e leigos cristãos para entender este escrito.  

11. Comentários finais: Neste terceiro contexto da introdução narrativa de João a ideia apresentada refere-se ao efeito produzido pela Palavra de Deus quando chegou ao mundo com toda a luz e com toda a verdade. Relembrando, primeiramente, ela “estava com Deus”, depois veio para os seus, por fim, agora, ela separou a humanidade em dois grupos, os que creram e os que não creram. Os crédulos são aqueles que receberam a luz e adquiriram o poder de serem chamados de “filhos de Deus”, ou seja, foram recriados através de um novo nascimento. Os incrédulos continuaram no mundo, sem entender a mensagem.  

A Palavra em sua plenitude se revelou com a pregação do evangelho por Jesus. O fato da Palavra ser um conjunto de instruções, novas normas, novos procedimentos que os homens deveriam adotar a partir de então, demonstra que ela não é uma pessoa, não é Jesus. E, do ponto de vista gramatical, os versos 9 a 14 continuam testemunhando da Palavra sem ainda mencionar Jesus. Assim sendo, ler um texto tendo em mente um conceito não presente é por demais errado. Os teólogos se adiantam em dizer que a Palavra é Jesus. Mas isso só fazem porque inferem ao texto algo que nele não existe.

A plenitude da Palavra

João testificou dele, e clamou, dizendo: Este era aquele de quem eu dizia: O que vem após mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu. E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça. Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou. João 1:15-18

1. Explicações iniciais: Quando olhamos para o prólogo de João, capturando o que cada pequeno contexto apresenta, vemos uma gradação em quatro estágios de como a Palavra de Deus chegou aos homens. No primeiro bloco de texto, versos 1 a 5, a Palavra estava com Deus. No segundo bloco, versos 6 a 8, a Palavra de Deus já está no mundo, mas não em sua forma plena. No terceiro bloco, versos 9 a 14, retrata o efeito da Palavra de Deus nos homens. O quarto bloco, versos 15 a 18, fala da Palavra em seu estado pleno. Aqui João mantém o foco naquele grupo de pessoas que recebeu a Palavra e creu.

Este pequeno contexto, vs. 15 a 18, também está dividido em três pequenas partes: 1) O conteúdo do testemunho de João Batista; 2) O recebimento da palavra ; 3) Deus revelado de forma plena pelo Filho. Elas afirmam uma mesma coisa: a grandeza da Palavra. 

2. João testificou dele, e clamou, dizendo: este era aquele de quem eu dizia: O que vem após mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu:  Existem três momentos no prólogo de João que são apresentados testemunhos. O primeiro testemunho é sobre a luz, (v. 6), o segundo sobre a Palavra de Deus, (v. 15), e o terceiro sobre o Cristo, (v. 19). Existem diferenças entres estes testemunhos que não são percebidas apenas com a leitura linear. Alguns detalhes conseguimos perceber apenas com uma análise estrutural do texto. Faremos isso nesta parte do estudo.

Também, uma outra dificuldade para compreender a essência do Evangelho de João é a leitura com uma ideia preconcebida. Estamos falando da amalgamação entre Jesus e sua palavra. Esta amalgamação é produzida pela associação arbitrária do conceito de “luz” empregado no verso 6 com o mesmo conceito aplicado em João 8:12, quando Jesus disse “Eu sou a luz do mundo”. Ao dizer isto Jesus está se posicionando como aquele Mestre prometido que viria ensinar tudo aos judeus, como bem reconhecia a mulher samaritana no poço de Jacó, (João 4:25). O fato de Jesus se considerar a “luz” não nos obriga a considerá-lo como a Palavra em João 1. Não há nenhuma subordinação contextual do capítulo 1 ao capítulo 8. O contrário até poderia ser verdadeiro. A “luz” do capítulo 8 como um produto da Palavra do capítulo 1. Associar a “luz” do capítulo 8 à “luz” do capítulo 1 é apenas uma relação de sentidos entre predicativos, mas não uma relação de sujeitos do texto. No capítulo 1, o sujeito é a Palavra, no capítulo 8, Jesus. Ligar um contexto com o outro apenas através do termo “luz” não parece o melhor caminho. O assunto do capítulo 1 é a Palavra, o assunto do capítulo 8 é a autoridade de Jesus para pregar a palavra.       

Dos três testemunhos do prólogo, o primeiro está no verso 6 e fala da “luz”. Luz, como já afirmamos anteriormente, é o aprendizado que obtemos de uma palavra proferida por um mestre. João Batista foi um destes mestres, por sinal, um dos maiores profetas, contudo ele foi categórico em dizer que não era a “luz”, isto é, não era o mestre principal e que, portanto, seu ensino ainda não era o definitivo, pois viria outro, um Mestre com um ensino superior.   

O segundo testemunho está no verso 15 e é uma referência à Palavra de Deus, não a Jesus. Os termos “dele” e o “aquele” do verso 15 apontam para o sujeito anterior no texto, que é a Palavra (Verbo) que “se fez carne” no verso 14. Esta Palavra é a mesma que fez o mundo, verso 10, e fez “todas as coisas”, verso 3. Certamente, a Palavra de Deus é antes e mais importante do que a palavra de João Batista. O verso 15 não é uma referência a Jesus, mas à Palavra criadora. Isto deveria ser facilmente entendido pelo simples fato de que o termo grego “logos” significa palavraA única associação possível da palavra “logos” seria com o termo Cristo no sentido de que o Cristo é a promessa (oráculo de Deus) que agora se realizou em Jesus. Isto, porém, não implica que Jesus existia na criação do mundo. O que existia era a promessa de Deus representada no “cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo”.       

Por fim, o terceiro testemunho vem a partir do verso 19, desta vez, de fato sobre o Cristo. Vejamos: E este é o testemunho de João, quando os judeus mandaram de Jerusalém sacerdotes e levitas para que lhe perguntassem: Quem és tu? E confessou, e não negou; confessou: Eu não sou o Cristo. (João 1:19-20) Esta inquisição dos sacerdotes e levitas continuou até que João Batista testemunhou mais claramente sobre o Cristo: João respondeu-lhes, dizendo: Eu batizo com água; mas no meio de vós está um a quem vós não conheceis. Este é aquele que vem após mim, que é antes de mim, do qual eu não sou digno de desatar a correia da alparca. (João 1:26,27) Ao lermos este texto na forma como ele se encontra atualmente, parece não haver dúvida de que o homem Jesus existiu de alguma forma antes de João Batista. Porém, vamos fazer um exame mais detalhado da frase “que é antes de mim” do verso 15 e descobrir com que objetivo ela foi empregada e a quem ela se refere.  

“Que é antes de mim”

Três vezes ocorrem narrativas envolvendo esta frase no Evangelho de João. A mesma narrativa ocorre em cada um dos evangelhos sinóticos, porém com palavras gregas diferentes. Estas narrativas podem ser divididas numa estrutura de três partes. Vejamos a tabela abaixo:

No Evangelho de João:

1) Verso 15O que vem após mimé antes de mimporque foi primeiro do que eu
2) Verso 27O que vem após mimé antes de mimdo qual eu não sou digno de desatar a correia da alparca
3) Verso 30Após mim vem um homemé antes de mimporque foi primeiro do que eu

Versão: ACF

Nos evangelhos sinóticos:

1) Mateus 3:11mas aquele que vem após mimé mais poderoso do que eucujas alparcas não sou digno de levar
2) Marcos 1:7Após mim vem aqueleque é mais forte do que eudo qual não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das suas alparcas
3) Lucas 3:16mas eis que vem aqueleque é mais poderoso do que eudo qual não sou digno de desatar a correia das alparcas

Versão: ACF

Esta estrutura pode ser sintetizada como: 1) aquele que vem, 2) é antes, [ou poderoso], 3) foi primeiro, [ou usa alparcas]. Analisemos cada frase.

1 – Aquele que vem: Em todas as ocorrências sabemos com certeza se tratar de um homem. As palavras homem, ou alparcas, nos assegura que a referência é a Jesus. Exceto o verso 15 que não tem nenhum termo que permita uma conclusão direta de que “aquele que vem” seja um ser pessoal. Isto nos obriga procurar no contexto imediatamente anterior o sujeito da ação. Daí, conclui-se que o sujeito da ação do verso 15 é a Palavra que “se fez carne” descrita no verso 14. Mas, concluir que esta Palavra é Jesus é um salto interpretativo muito grande, pois nada no contexto implica nisso a não ser que um pensamento induzido se faça presente na mente do leitor. Caso contrário, devemos ficar somente com aquilo que é concreto no texto. Isto nos obriga a aceitar que o testemunho de João era sobre a Palavra, não sobre Jesus.  

2 –É antes [ou poderoso]: A principal observação a ser feita é que somente em João aparece a expressão “antes de mim”, que segundo os intérpretes se trata de uma referência ao tempo de existência de Jesus, mas isso não é a verdade. A frase é uma referência à preeminência, importância, superioridade, poderoso, forte etc. A frase usada na mesma posição estrutural da narrativa nos demais evangelhos confirma isso: é mais poderoso do que eu. Dificilmente João iria acrescentar uma informação extra e conflituosa a uma narrativa corrente na época, contando que os sinóticos foram escritos bem antes. O conceito de tempo não se encaixa neste contexto. Aplicar esta ideia à frase “antes de mim” é colocar em conflito a lógica natural, pois Jesus nasceu depois de João. Diante disso, devemos preferir o sentido de superior, poderoso, importante neste contexto.

3) Foi primeiro, [ou usa alparcas]: Em todas as ocorrências a terceira frase é uma explicação das frases anteriores. Ela confirma o sentido das expressões “mais forte do que eu” ou “mais poderoso do que eu”. Na cultura semita o discípulo é quem tirava as alparcas do mestre, demonstrando relação de superioridade/inferioridade. Das seis ocorrências quatro delas apresenta a palavra alparcas, por isso, não há o que discutir sobre o que elas pretendem dizer. Elas querem dizer o que está escrito “mais forte”, “mais poderoso”, portanto, maior, mais importante, superior a João Batista. Nas outras duas não ocorre o termo “alparcas”, mas no verso 30 de João 1 contém o termo “homem”. Então, sem dúvida, cinco das seis passagens falam de Jesus no sentido de superior. A grande questão (e segredo para maioria dos teólogos) está no verso 15, que não tem nenhuma alusão direta a Jesus. Esta narrativa é diferente, seu foco é a grandeza da Palavra de Deus em relação à palavra de João Batista.

O objetivo desta análise é esclarecer que o verso 15 tem como referência a Palavra de Deus, não Jesus, por isso, vamos detalhar a explicação deste verso.  

A expressão “foi primeiro do que eu” do verso 15 é um aposto explicativo das frases “é antes de mim” e “aquele que vem após mim”, que por vez, faz referência à Palavra que “se fez carne” do verso 14. “Antes de mim” é uma frase qualitativa, assegurando a característica de superioridade da Palavra de Deus em relação à palavra de João Batista. Como está escrito no verso 6, João veio para dar testemunho da luz, mas ele não era a luz, isto é, o ensino dele não poderia ser maior, mais importante do que a própria Palavra de Deus (por isso, ele dizia não ser a luz e nem o Messias). Em outras palavras, João veio para testemunhar que a Palavra de Deus viria. Isto, porém, não implica que devemos entender de forma direta que Jesus seja a Palavra.     

A observação acurada do contexto imediato das seis ocorrências das expressões “antes de mim” e “mais poderoso do que eu” nos leva a perceber que são dois apostos explicativos semelhantes em sua estrutura sintática, mas com referência a objetos diferentes. No verso 15, a referência é a Palavra de Deus, que já existia “no princípio”, antes de João. Já, o aposto explicativo do verso 27, por exemplo, é uma referência a Jesus, que vivia no “meio de vós” (v. 26), dos judeus.

Não resta dúvida hermenêutica de que estamos diante de narrativas semelhantes, mas cujos sujeitos são diferentes. Das seis vezes que a narrativa aparece, cinco delas se dirigem a Jesus, mas a de João 1:15 se refere à Palavra de Deus. Para fecharmos em definitivo a questão, vamos para uma análise exegética.  

No grego

Primeiramente, vejamos as seis ocorrências no grego, concentrando a análise na frase “antes de mim”:

No Evangelho de João:

VersosGrego SentidoTipo de texto
15Έμπροσθέν μουÉmprosthén mouNa minha frenteReceptus
15ανωτερος μου,Anoteros mouSuperior a mimGrego Moderno
27ανωτερος μου,Anoteros mouSuperior a mimGrego Moderno
30ανωτερος μουAnoteros mouSuperior a mimGrego Moderno

Fonte: Biblehub e Bibliaonline

Nos evangelhos sinóticos:

VersosGrego SentidoTipo de texto
Mateus 3:11ισχυροτερος μουischyroteros mouMais forte do que euGrego Moderno e Receptus
Marcos 1:7ισχυροτερος μουischyroteros mouMais forte do que euGrego Moderno e Receptus
Lucas 3:16ισχυροτερος μουischyroteros mouMais forte do que euGrego Moderno e Receptus

Fonte: Biblehub e Bibliaonline

Das tabelas acima depreende-se que também no grego o sentido da frase “antes de mim” quer dizer que algo, ou alguém, é superior, mais forte, mais poderoso. Esta análise está baseada no Textus Receptus e no Grego Moderno, mas o Codex Sinaiticus (manuscrito do século IV) também diz a mesma coisa, o que assegura a qualidade desta exegese.     

A palavra grega usada no Codex Sinaiticus e Textus Receptus para “antes” em João 1:15 é “emprosthen”. De acordo com o Léxico Grego do Novo Testamento os significados possíveis são: para representar um local que está na frente de uma pessoa ou coisa; alguém na presença de outro em posição oposta; que está à vista de outro, ou; a classificação em relação a algo. Já o Grego Moderno usa a palavra “anoteros” que significa superior. O termo nos sinóticos que ocupa a mesma posição na estrutura da frase é “ischyroteros”, literalmente significa “mais forte”.

Não há a mínima razão para dar a este texto o sentido de existência. Seja qual for o termo grego, o significado mais coerente é o de preeminência, importância, superioridade.

Para fechar a análise, verifiquemos como aparece o texto em algumas versões mais recentes, com nossos destaques: BA: “tem uma posição superior do que”; NVI: “superou a mim”; NLT: “que é muito maior do que eu”; BSB: “ultrapassou a mim”; NTV: “que é muito maior do que eu”; NASB: “provou ser meu superior”; NASB (1995):  “tem uma categoria mais elevada do que eu”; CSB: “está à minha frente”; HSBC: ”tem me superado”; CIV: “Ele é maior do que eu”; UVF: “tem precedência sobre mim”; TBW: “preferido antes de mim”; DPC: “foi colocado à minha frente”; BAIS: “é preferido em honra a mim”. Ainda que existam versões colocando o texto num sentido diferente, o que devemos levar em conta é todo o conjunto hermenêutico e exegético possível da narrativa. Ela está posta de uma forma que apresenta a ideia de superior, preeminência, não de antecedência no tempo. Não há mais o que discutir.

Contudo, ainda há o que dizer sobre João 1:15 referente à frase “porque foi primeiro do que eu”. Se, como foi visto acima, o pronome “aquele” (ou “aquela” em versões que usam o termo Palavra ao invés de Verbo) se refere à palavra que “se fez carne” do verso 14, então, temos condições de analisar a palavra “antes” apenas dentro do contexto imediato.

O contexto imediato é este: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. João testificou dele, e clamou, dizendo: Este era aquele de quem eu dizia: O que vem após mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu.” (João 1:14,15) Deste contexto imediato, ainda podemos extrair um micro contexto nas expressões: “O que vem após mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu.” Vamos analisar.

“Porque foi primeiro do que eu”

Se aceitamos que o testemunho do verso 15 é sobre a Palavra de Deus (conjunto de sons, escritas e símbolos que expressam ideias)[5] e não sobre a pessoa de Jesus, pois contextualmente Ele ainda não faz parte do assunto, facilmente entendemos a frase de João Batista: “porque foi primeiro do que eu”, ou “porque ele era antes de mim”, conforme a tradução. Sem hesitação, a Palavra de Deus tem a propriedade se ser antes de João. De fato, desde o “princípio” ela já existia.   

As frases “o que vem após mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu” lidas isoladamente não definem o objeto em questão. O pronome relativo “que” da frase “que vem após mim” aponta para algo da oração anterior, substituindo-o. Ao olharmos para a oração anterior, encontramos o termo “aquele” da frase “este é aquele de quem eu dizia”. “Aquele” é um pronome demonstrativo que aponta para algo próximo, mas que não está no mesmo ambiente de quem fala. É um termo genérico que não indica algo específico, pode ser uma pessoa, como pode ser qualquer outra coisa. Como pronome, ele também está substituindo outro termo anterior. Neste caso, está no lugar do pronome pessoal “dele” da frase “João testificou dele”. Este termo é a junção da preposição “de” com o pronome “ele” e é utilizado para representar, segundo o Dicionário Oxford, “algo ou alguém, cujo nome foi substituído pelo pronome pessoal ele por já ter sido mencionado anteriormente”.[6] Feito estas observações, estamos diante de apenas uma ação hermenêutica para descobrir o que ou quem tem preeminência sobre João Batista.  

“João testificou dele” (do Verbo ou Palavra)

Dele” quem? (ou “dela”, dependendo da tradução). Quem foi mencionado anteriormente e foi substituído pelo pronome “dele”? Somos obrigados a ler o verso 14: “E o Verbo se fez carne”. É o Verbo, ou a palavra, que está sendo referenciado por “dele” no verso 15.

Esta análise gramatical e contextual nos levou à Palavra “que se fez carne”. Palavra é algo, não é uma pessoa. As frases desprovidas de um sujeito claro, construídas com pronomes relativos e demonstrativos e o contexto culminam na apresentação de algo impessoal: a Palavra de Deus. O testemunho de João no verso 15 não aponta para Jesus. Como vimos na extensa análise acima sobre os versos 15, 27 e 30, podemos, agora, falar com certeza, que o testemunho de João no verso 15 não tem como objeto o mesmo elemento dos versos 27 e 30. Estes tratam de Jesus, mas o verso 15 da Palavra de Deus.

Os três testemunhos de João mencionados acima são sobre a luz, verso 6, sobre a Palavra de Deus, verso 15, e sobre Jesus, versos 27 e 30.

Às vezes é mais fácil aceitar o que primeiramente vem à nossa mente seja pela voz do texto ou pela voz de outro intérprete do que fazer uma exaustiva análise de um texto e descobrir sua essência. Mas, com certeza, aquele que dedica seu tempo para pesquisar e analisar, ganhará em qualidade de entendimento.

Apesar desta análise longa, concordo que, devido ao caráter fragmentário das narrativas, a questão pode ainda não estar totalmente resolvida para o leitor. Por isso, ainda deixo em aberto a possibilidade de que o exame acima esteja equivocado e, de fato, o verso 15 retrate Jesus e o verdadeiro sentido de “antes” seja uma referência a tempo [o que não é de acordo com a exegese no grego]. Diante desta possibilidade, podemos checar de outra maneira: testando esta interpretação para provar se o sentido lógico se enquadra no texto.  

Se aplicarmos a Jesus o termo “antes” no sentido de tempo, temos uma estranheza, pois Ele como homem veio depois de João Batista. Para desviarmos desta ilógica, temos que transformar o Jesus homem num Jesus Deus, preexistente antes Maria. O mais coerente é que o termo “antes” signifique o mais importante. Na cultura semita, o que vem antes sempre é o mais importante, como podemos entender da parábola dos primeiros assentos, (Lucas 14:7-11). Além do termo “antes” significar o mais importante, faz referência à Palavra de Deus. De fato, João Batista tinha diante de si duas coisas mais importantes do que ele, Jesus e a própria Palavra de Deus. Como o contexto de João 1:1-15 não apresenta Jesus é aceitável que a referência seja à Palavra de Deus.   

Seguindo o evangelho de Mateus, João Batista foi um profeta especial que veio com a missão de preparar o povo de Israel para a chegada do Messias. Para isso, assim como Jesus, ele também pregou o evangelho do reino. Dizia: “Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus”, (Mateus 3:2). Sua pregação foi muito poderosa, a ponto de mover quase toda a nação: “Então ia ter com ele Jerusalém, e toda a Judéia, e toda a província adjacente ao Jordão”, (Mateus 3:5). Além de pregar sobre o reino de Deus, dizendo que as regras seriam mais arrochadas, ele testemunha de Jesus: “mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu”, (Mateus 3:11). E reconhece essa grandeza quando Jesus vem para ser batizado por ele: “Eu careço de ser batizado por ti, e vens tu a mim?”, (Mateus 3:14) João está testemunhando do reino de Deus e testemunhando de Jesus. Em suas pregações ele testifica da Palavra de Deus e também de Jesus. Jesus era, de fato, quem iria ensinar a Palavra de Deus ao povo com maior grandeza do que João. Por isso, o ensino de João era menor do que a Palavra de Deus e também era menor do que o ensino de Jesus. Está é mais uma evidência de que João 1:15 não retrata Jesus.

Em conclusão, quando analisamos a frase “o que vem após mim é antes de mim, porque foi primeiro do que eu” em seu devido contexto imediato, encontramos a palavra “que se fez carne” como sujeito destas orações e não Jesus, que sequer uma única vez foi mencionado no texto.

3. E todos nós recebemos também da sua plenitude, e graça por graça, v. 16. Porque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo, v. 17: O conteúdo deste verso está relacionado à Palavra de Deus, não a uma pessoa. Este texto está subordinado ao contexto anterior. Até o momento, apenas a Palavra de Deus foi o assunto.

Neste  verso, João, o apóstolo, se referindo àquele grupo do verso 12, diz: “todos nós recebemos também da sua plenitude”. Importante atentar para a palavra “plenitude”. Se houve um momento de plenitude, houve um momento de não plenitude. Por quê? Porque enquanto vigorava apenas a lei de Moisés, o plano de salvação era conhecido em partes.

A frase “graça por graça” alude a algo que foi aos poucos sendo completado. Assim, aconteceu com a Palavra de Deus ao longo dos séculos de Moisés a Jesus. O texto é claro ao enfatizar que uma parte veio por Moisés, a lei, e outra parte veio por Jesus, a graça. A lei e a graça de Deus formam o conjunto chamado evangelho da salvação. Este evangelho é a Palavra de Deus mencionada no prólogo de João e preocupação ao longo do livro. Fácil entender que se a Palavra em sua plenitude veio por Jesus, ela não pode ser Ele mesmo.   

Talvez, o ponto mais importante de nosso estudo se concentra nesta frase: “veio por Jesus”. É a primeira menção a Jesus no texto. Mas, Jesus não entra e nem é conduzido ao assunto principal do prólogo. O assunto é e continua sendo a Palavra de Deus. Jesus é mencionado porque está relacionado como complemento do subtema: a plenitude da Palavra. Se considerarmos que no mesmo contexto há uma referência a Moisés em paralelo com Jesus, então, poderíamos deduzir, pela mesma lógica, que Moisés também é a Palavra.

Para compreendermos um texto não podemos sobrepor o assunto principal com temas secundários, ou terciários. O assunto principal de um texto sempre determina o entendimento de suas partes. Quando fazemos as devidas relações entre as ideias ― estas relações devem ser no plano dos sentidos objetivos do texto, nunca como fruto de nossa opinião ou ideias preconcebidas ― compreendemos com mais perfeição o assunto principal e os secundários. Jesus não é o assunto principal deste texto. Nitidamente a Palavra de Deus é o assunto que domina o prólogo. Moisés e Jesus são temas terciários.  

Vamos elucidar melhor. O assunto principal é a Palavra de Deus, versos 1 a 18. Assuntos secundários: I) a origem da Palavra, vs. 1 a 5;  II) a Palavra como luz do mundo, vs. 6 a 8; III) os efeitos da Palavra no mundo, vs. 9 a 14; e IV) a plenitude da Palavra, vs.15 a 18. As frases “a lei foi dada por Moisés” e “a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” são informações de terceiro nível que compõem a informação de segundo nível, a plenitude da Palavra, que por sua vez, compõe o assunto principal, a Palavra de Deus. Jamais, podemos usar o termo Jesus Cristo no lugar do termo Palavra. A Palavra é o que domina o assunto e subordina o termo Jesus.     

4. Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou, (v. 18): Ao compreendermos que o assunto principal do texto é a Palavra de Deus, naturalmente compreendermos que a ideia de plenitude é um de seus predicativos. Daí, facilmente assimilamos o sentido da frase: “Deus nunca foi visto por alguém”. Se a Palavra de Deus ainda não era plenamente anunciada, o conhecimento sobre Deus ainda era parcial, somente o Filho foi capaz de transmitir a plena compreensão sobre o Pai. Daí, o sentido da frase “o Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou”. Ou seja, somente Jesus foi capaz de revelar a plenitude dos ensinos sobre Deus.

Colabora com isso o verso 13 do capítulo 3: “Ora, ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem, que está no céu.” Deus está no céu e do ponto de vista físico deveríamos ir até lá para vê-Lo. Certamente, Jesus não estava falando no sentido físico, mas espiritual. Pois Deus é invisível e “habita na luz inacessível; a quem nenhum dos homens viu nem pode ver”, (I Timóteo 6:16). Quando Jesus disse “que ninguém subiu ao céu” tinha em mente a discussão teológica com Nicodemos sobre conhecer o Espírito Santo. Certamente, “subiu ao céu” está no sentido espiritual, assim como “desceu do céu” e “está no céu”. A frase “subiu ao céu” quer dizer que Jesus tinha alcançado o conhecimento pleno de Deus. Este conhecimento pleno (a “plenitude” de João 1:17) foi alcançado através dos estudos diários da Palavra de Deus feitos por Jesus desde sua adolescência (Lucas 2:40,52, Isaías 50:4). Assim, Ele subiu em conhecimento de Deus ao ponto de estar no “seio do Pai”, estar “no céu”. A frase “está no céu[7] é compatível com a frase “está no seio do Pai”.

Já, a frase “desceu do céu, o Filho do homem”, (João 3:13), é compatível com a expressão “Filho unigênito, que está no seio do Pai”, (João 1:18). O “Filho unigênito” significa o único gerado em sua categoria. “Filho do Homem” é um conceito profético para o Messias, (Daniel 7:13). O Messias era uma ideia, uma promessa divina presente em Deus, no seu seio, no céu, como um Cordeiro morto antes da fundação do mundo, (Gênesis 3:15, Apocalipse 13:8). Assim sendo, o pensamento de gerar um Filho unigênito à sua imagem materializou-se a partir do momento que Jesus nasceu de Maria. Jesus nasceu como homem, mas ao longo de seu crescimento físico e desenvolvimento espiritual foi gerado como o “unigênito” de Deus, (João 1:14. 3:16,18; I João 4:9). A ideia de criar o homem perfeito, o Filho do Homem, “desceu do céu”, saiu do “seio do Pai” e se concretizou através do aprendizado diário do menino Jesus até que Ele foi batizado por João Batista e veio a voz do céu, dizendo: “Este é meu Filho amado, em quem me comprazo”. Para completar, em outras palavras, um homem gerado por Deus desde o ventre de sua mãe recebeu os cuidados divinos em todas as fases de sua vida até alcançar o pleno conhecimento de Deus; e, em posse deste conhecimento, revelou Deus aos homens. Por isso, até aquele momento da história nenhum homem havia visto Deus, somente o Filho do Homem que “está no céu”.

5. Comentários finais: Este quarto pequeno contexto do prólogo tem como tema a plenitude da Palavra. Este contexto nos informa que chegamos à plenitude da Palavra por meio de Jesus. Isto, então, significa que antes a Palavra não era completamente conhecida. Nitidamente, durante a história de Israel, percebemos uma evolução de um grau menor de conhecimento da Palavra para outro mais elevado, completo. Através do testemunho de Moisés e dos profetas ela ganhou espaço no entendimento das pessoas. Mas o mundo não a aceitou. Só em Jesus Cristo a plenitude do conhecimento da palavra de Deus foi total e consequentemente de Deus: “E sabemos que já o Filho de Deus é vindo, e nos deu entendimento para que conheçamos ao Verdadeiro”, (I João 5:20).

Existem três testemunhos referenciados por João, o evangelista, no prólogo. No quarto contexto aparece o segundo testemunho, este é sobre a Palavra de Deus, não sobre Jesus. A análise aponta que “aquele” que era “antes” de João Batista, v. 15, é a Palavra de Deus, v. 14. A palavra “antes” é uma referência à superioridade da Palavra de Deus em relação a João Batista, ou à sua pregação. As palavras gregas usadas para “antes” (emprosthén, anoteros) estão relacionadas com algo superior, não anterior. Além disso, vimos que várias versões traduzem João 1:15 com o sentido de superior. Assim, fica bem substanciada a ideia de que o assunto principal do prólogo de João é a Palavra de Deus que desce do céu.

Conclusão

A Cristologia ortodoxa não assevera que o prólogo de João trate apenas da Palavra de Deus. Para ela o Verbo (Palavra) é Jesus. Isto não é verdade. Uma leitura atenta do texto não revela isso. Primeiro, porque não aparece o termo Jesus no texto como sujeito principal. O objeto central do texto é a Palavra. Segundo, porque a ideia de que esta Palavra se trata de Jesus é uma indução ao texto. Extraem-se conclusões de outros lugares e depois as aplicam em João 1:1.  

Como expusemos acima, o prólogo de João apresenta quatro pequenos contextos. Cada um destes contextos apresenta um aspecto da Palavra de Deus. Primeiro, no “princípio” a Palavra estava com Deus, v. 1-5, ela apresenta a fonte da pregação de Jesus. Depois ela salta para o testemunho de João, v. 6-8, ou seja, o valor que João auferiu à Palavra de Deus. No terceiro momento, segue para a aceitação e negação dos homens, v. 9-14, isto é, a Palavra de Deus não é para todos. E, por fim, no quarto contexto, alcança a plenitude em Jesus, v. 15-18, quando mostra que somente a partir dele foi possível entender plenamente a Palavra de Deus. Estes pequenos contextos, na estrutura do texto, são como degraus que a Palavra de Deus percorreu para descer mais perto dos homens.

Bom, expusemos detalhadamente cada um deles e mostramos como giram em torno de um assunto central, a Palavra. Além de estarem ligados ao contexto geral, mostramos como internamente eles abordam um aspecto da história da Palavra de Deus. Talvez, o ponto mais crítico que encontramos seja a frase “o que vem após mim, é antes de mim, porque foi primeiro do que eu”. Apesar das dificuldades para se entender este texto, elas foram superadas por uma análise estrutural, quando foram colocadas lado a lado todas as suas ocorrências, tanto em João como nos demais evangelhos, e, por comparação, foi possível deduzir que ela não se refere a Jesus, mas à Palavra de Deus. Além disso, foi abordado o problema da palavra “antes”  com uma exegese no grego. No grego seu sentido é claro, se trata de superioridade, não de antiguidade. Portanto, não há muito o que recorrer. Os teólogos irão atrás de seus contra-argumentos, mas é chegado um novo momento da história teológica. De ora em diante, cada vez mais os textos bíblicos serão esclarecidos. Cada vez mais os homens saberão que Jesus não é o Verbo.  

Para concluir, uma citação da qual discordamos:

O evangelista usa “Logos” 6 vezes como uma designação da pessoa divina preexistente de Cristo ( João 1: 1, 14 1 João 1: 1 Apocalipse 19:13),  mas ele nunca o coloca na boca de Cristo. A ideia que João procurou transmitir com este termo não era essencialmente diferente da concepção de Cristo apresentada por Paulo. Mas o uso da palavra deu uma precisão e ênfase ao ser de Cristo que o escritor deve ter sentido que era especialmente necessária para a classe de leitores a quem seu Evangelho se destinava. O Logos com o qual o Quarto Evangelho começa é uma pessoa. Os leitores dos Sinópticos há muito se familiarizam com o termo “Palavra de Deus” como equivalente ao Evangelho; mas o significado essencial da Palavra de João é o próprio Jesus, Sua pessoa. Temos aqui uma mudança essencial de significado. As duas aplicações estão realmente conectadas; mas a concepção da revelação perfeita de Deus no Evangelho passa para a revelação perfeita da natureza divina em geral (Weizsacker, Apostolic Age, V. ii, 320).

Esta citação resume o pensamento cristão atual, mas não se relaciona com o pensamento cristão primitivo. Dizer que João nunca colocou a Palavra de Deus na “boca de Cristo” é ir justamente contra o que o Evangelho de João faz o tempo todo. WEIZSACKER diz que João usou o termo Logos (diferente de Paulo que nunca fez isso) para atingir seu público. Que tenha em mente um público tudo bem, mas concluir que ele usou o temo Logos com o propósito de referenciar a ideia grega do agente pessoal entre Deus e a matéria é dizer que João abandonara seu conceito judaico da criação. Coisa impossível de se afirmar. O termo Logos com o qual o quarto evangelho começa não é uma pessoa, mas é algo substancial a Deus, pertence a Deus, é inerente a Ele, sai dEle. Deus é a fonte do Logos.

WEIZSACKER afirma que a expressão Palavra de Deus nos sinóticos é equivalente ao Logos em João. Isto colabora com tudo o que dissemos acima e faz levantar uma questão: por que João mudaria a apresentação do Cristo? Por que o Jesus de João é mais, digamos, sofisticado do que o dos sinóticos? E, por que WEIZSACKER faz equivalência do Logos com a Palavra de Deus nos sinóticos e não com Cristo? Simples. Porque o Logos não é o Cristo. Todas as alusões ao Logos como sendo o Cristo são fora da Bíblia. Não há nos evangelhos e nem n´outra parte das Escrituras tal referência.

WEIZSACKER entende que houve uma mudança essencial de significado, mas não houve. A verdade é que o Jesus dos evangelhos sinóticos é o mesmo Jesus de João. A mudança significativa que houve está na abordagem histórica dos primeiros para a abordagem teológica de João. Os sinóticos apenas almejavam narrar uma histórica como aconteceu, enquanto João quer provar que o personagem desta história é o verdadeiro Messias.    

O prólogo de João é a introdução desta narrativa que prova Jesus é o Cristo. Como toda introdução, ela representa o teor do assunto que se desenvolve ao longo do livro. Ao lermos João, vemos o tempo todo, o apóstolo buscando provar através dos episódios por ele selecionados que Jesus é o Messias, que recebeu a Palavra de Deus, ensinou aos homens e eles creram. Assim, podemos concluir que o Logos não é Jesus. O Logos é a Palavra de Deus a qual esteve na boca de Jesus quando ensinava o povo.


[1] Bom saber que o termo “Verbo” é latino. Verbo é a tradução do termo grego “logos”. Verbo, ou Logos, significa palavra. Verbo, logos, ou palavra não se refere a uma pessoa, mas a uma coisa. As versionistas bíblicos que colocam os termos em maiúsculo cometem um equívoco. Quando o evangelista João escreveu este texto, o fez em menção ao pensamento judaico de que Deus tudo criou por sua palavra. Como se sabe, o texto foi redigido em grego, por isso aparece “logos”. Se fosse em hebraico, o termo para expressar seu pensamento seria “davar”. Deus é uma pessoa. Davar, ou logos, (palavra) é algo que sai de Deus. João, ao usar o termo palavra não se refere a Jesus. O que João quer demonstrar em seu evangelho é que a Palavra de Deus veio salvar o mundo através da mensagem de seu Filho Jesus, (João 20:31). Por isso, usaremos o termo Palavra em substituição a Verbo para melhor compreensão do assunto.

[2] “No princípio”: A frase parece sintetizar todo o período que antecede a pregação do evangelho, desde  a criação até João. Não parece ser apenas uma referência ao Gênesis 1:1.

[3] Nota: Alguns ramos do Unitarismo defendem que Jesus é a Palavra no sentido representativo de Deus. Este pensamento é uma evolução no combate ao pensamento trinitariano, mas é uma indução ao texto. Nada no texto requer que tenhamos que entender desta forma. E, por toda a extensão do Evangelho, a distinção entre Jesus e a Palavra são bem claras.

[4] “Princípio”: não significa que seja o princípio de Gênesis, pode, muito bem, ser o princípio do Evangelho de Jesus.

[5] Palavra: É uma manifestação verbal ou escrita formada por um grupo de fonemas com uma significação. Do latim parábola. Palavra é um conjunto de sons articulados que expressam ideias e são representados por uma grafia, formada por uma reunião de letras, que quando agrupadas formam as frases. Significado.com.br: Acessado em 25, dez 2021.

[6] Dele: Acessado em: 25, dez 2021.

[7] A frase “está no céu”, poderia ser entendida no sentido de que Jesus já estava no céu quando João escreveu. Aí, teríamos que entender literalmente as demais frases no contexto. Não parece provável que assim seja, pois, neste caso, teríamos que entender que Jesus já havia subido ao céu antes da conversa com Nicodemos. Isto não pode estar certo, pois em João 20:17, Jesus disse a Maria Madalena que ainda não havia subido ao Pai. Então, nos resta entender esta frase em seu sentido espiritual.

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