Uma controvérsia: o lava-pés é antes ou depois da ceia? Na tentativa de esclarecer o assunto, o nosso estudo começa pela compreensão do Evangelho de João, estende-se para os sinóticos, depois avança para a compreensão das transformações da ceia na igreja de Coríntios e finaliza com algumas observações sobre as traduções que colocam em contradição o momento do lava-pés. Três pontos importantes vão surgir: 1) a narrativa de João define o momento do lava-pés; 2) os evangelhos são harmônicos e revelam a sequencia dos eventos de acordo com o ritual pascal; 3) houve uma transformação histórica do ritual judaico até se tornar o ritual simples da igreja de Corinto.
A realidade deve ser a base do nosso estudo. Por isso, o ritual da páscoa será o ponto de apoio. São as rígidas normas deste ritual que Jesus seguiu à risca naquela noite como anfitrião da festa. Todos os evangelistas descrevem fragmentos deste ritual. Contudo que alguns argumentem não ser a páscoa, não vejo necessidade de contra-argumentar, as evidências são muitas no sentido, vejam: os evangelhos dizem que era a páscoa, Mateus 26:2, 17-19; Marcos 14:1, 12, 14, 16; Lucas 22:7, 8, 11, 13, 15; no Antigo Testamento vemos que a páscoa era comemorada no por do sol do dia 13 para o 14 de Abib, mesmo momento que Jesus a comemorou.
Partes deste estudo: 1) O ritual da páscoa judaica; 2) O lava-pés e identificação do traidor; 3) Harmonia das narrativas; 4) A transformação da páscoa judaica na Ceia do Senhor; 5) A questão da tradução; 6) Conclusão: o lava-pés foi antes ou depois?
O rito da páscoa judaica
Descobrir o momento correto em que se deve realizar o lava-pés, implica, primeiro, compreender o ritual pascal como era observado pelos judeus na época de Jesus. A cerimônia era determinada por regras rígidas e, certamente, Jesus as seguiu. Eis como se desenvolvia segundo R. N. CHAMPLIN em O novo testamento interpretado versículo por versículo:
1) O anúncio da festa era feito pelo chefe da família, que nesse caso era o Senhor Jesus, como cabeça do grupo. 2) Os ritos da festa eram regulamentados pela sucessão de taças de vinho a serem bebidas, em que o vinho vermelho usualmente era misturado com água. 3) O chefe da casa expressava suas ações de graça pelo vinho e pela festa, tomando o primeiro copo. Seguiam-se então os outros, cada qual tomando o seu copo. 4) Em seguida eram lavadas as mãos e erguiam louvores a Deus. […] 5) Comiam-se as ervas amargosas, as quais eram mergulhadas em vinagre ou água salgada, o que servia para lembrar os escravizados no Egito. 6) Então era trazido o cordeiro pascal, bem temperado com molho, num tipo de terrina chamada “charoseth”. Os pratos incluíam o molho, os pães asmos, as ofertas festivas e o cordeiro pascal. O sentido desses elementos da festa era esclarecido. 7) Então ocorria a primeira parte do hallel ou cântico de louvor, extraída dos Sal. 113 e 114, imediatamente após o que se tomava o segundo copo de vinho. 8) Chegava o momento mais importante da festa, ao que todos reclinavam. O chefe da casa tomava dois pães, partia um deles em dois pedaços, punha-os sobre o pão inteiro, abençoava, cobria tudo com ervas amargosas, mergulhava-o no molho, comia um pouco e o distribuía, com as palavras: “Este é o pão da aflição, que nossos pais comeram no Egito”. 9) Em seguida, o cordeiro pascal era abençoado e o chefe da família comia um pouco do mesmo. As ofertas festivas eram então comidas com o pão, sempre mergulhadas no molho. 10) Finalmente o cordeiro era comido, até ser completamente consumido por todos. 11) Isso era seguido por ações de graças e pela ingestão do terceiro copo de vinho. 12) O restante do hallel era então entoado (Sal. 115-117), após o que era tomado o quarto copo de vinho. Às vezes era tomado um quinto copo, enquanto entoavam os Sal. 120-127.
A moderna festa da páscoa segue a mesma liturgia dos tempos de Jesus, apenas com diferenças de ordem secundária. Abaixo, como ela é comemorada atualmente, com exceção óbvia do cordeiro.
1. Qaddesh. É o início da celebração pascal, e consiste em uma benção pronunciada sobre um copo de vinho, que é bebido no final da oração. 2. Urhas (ablução das mãos). Lavam-se as mãos, sem entretanto recitar as bênçãos comuns, porque a refeição propriamente dita ainda não se inicia. 3. Karpas (sentem-se). Come-se uma folha de erva molhada no vinagre, como lembrança da amargura da escravidão. 4. Yahas (dividir) – Pegam-se os três pães asmos, quebra-se ao meio o que está ao centro, pondo uma metade novamente no centro e escondendo a outra metade em qualquer lugar, por exemplo, debaixo da toalha. 5. Maggid (narrador). Enche-se um segundo copo de vinho, e antes de bebê-lo, narra-se a libertação do Egito, explicando o seu sentido e a atualidade com trechos da Bíblia e com narrações, hinos, cânticos e salmos. É a parte mais importante e específica do seder pascal. 6. Rohah (ablução). Lavam-se as mãos com a bênção habitual. 7. Mohsi’ massah (bênção dos asmos). Abençoa-se o pão como de costume, sendo que desta vez é o pão asmo, isto é, sem fermento, e come-se um pedacinho. 8. Maror (erva amarga). Come-se uma folha de erva amarga com um pouco de haroset, o doce composto de maçãs rapadas e de nozes, recorda como os hebreus, com sua coragem e seu amor pela liberdade, conseguiram suportar a escravatura egípcia. 9. Korek (envolver). Agora come-se uma folha de erva amarga, desta vez, com um pedaço de pão asmo. 10. Shulhan ‘Orek (ceia). É a hora da ceia, que se inicia, tendo como entrada um ovo ou outros alimentos especiais, ricos de conteúdo simbólico. 11. Safun (escondido). Come-se o pedaço de asmo que havia sido escondido previamente e que, com um termo de explicação incerta, é chamado de afiqoman. Ele é comido em memória do cordeiro pascal, e depois dele é proibido comer qualquer coisa até dia seguinte. 12. Barek (bênção). Terminada a refeição, lavam-se as mãos como de costume e se recita a Bircat ha-mazon (prece após a refeição), enchendo o terceiro copo e bebendo-o no fim. 13. Hallel (louvor). Então agradece-se a Deus pela ceia pascal através da qual se reviveu o milagre da liberdade. Enche-se um copo de vinho (o quarto), que se bebe depois de ter recitado os Salmos 115-118, chamados de hallel. No fim de tudo abre-se a porta, para favorecer a entrada de Elias, o mensageiro da era messiânica. 14. Nirsah (aceitação). Anuncia-se o final do ceia pascal e pede-se a Deus que seja sempre o libertador de Israel.
A sequência dos eventos pode ser sintetizada, para fins didáticos, em três partes: o início, quando se bebem dois cálices; o meio, marcado pelo pão, ofertas festivas e o cordeiro e o fim, marcado pelos dois últimos cálices. Temos, então, a seguinte característica geral do ritual: beber/comer/beber. Com a sequência do rito em mente, vamos aos evangelhos.
O lava-pés e a identificação do traidor
João situa o lava-pés e a identificação do traidor “durante a ceia”, Mateus e Marcos situam “enquanto comem” e Lucas após a benção do pão. Estas informações nos levam a uma conclusão possível: o lava-pés foi durante a ceia.
O texto de João capítulo 13 é o único que fala sobre o evento do lava-pés. Sem este texto, provavelmente, nada saberíamos sobre este evento junto à santa ceia. O evangelho de João é por excelência a fonte que responde à questão. A única informação que nos dá sobre o momento do lava-pés é que foi “durante a ceia”. De acordo com João, durante a ceia aconteceu também a identificação do traidor, logo após o lava-pés. Portanto, o lava-pés terminou antes do final da ceia, não depois. Não há nenhuma razão para mudar esta ordem dos fatos: primeiro o lava-pés, depois a identificação do traidor.
Os demais evangelhos não falam sobre o lava-pés, contudo, narram parte da identificação do traidor. Mateus e Marcos dizem que “enquanto ceavam” deu-se a identificação do traidor, já Lucas coloca a narrativa logo após o partir do pão, portanto, antes do cordeiro.
Quando colocamos o ritual da cerimônia pascal como pano de fundo das narrativas evangélicas, fica fácil entender o exato momento do lava-pés [veja infográfico no rodapé da página]. Vimos acima todos os eventos do cerimonial, mas basicamente ele se divide em três partes caracterizadas por: beber/comer/beber. Quando o evangelista João se refere à ceia, esta falando do momento quando eram comidos as ofertas festivas e o pão mergulhado no molho e o cordeiro. Estes eventos situam-se entre o segundo e o terceiro cálices. Foi neste momento que se deu o lava-pés e a identificação do traidor.
A ceia propriamente dita se divide em quatro momentos: 1) o partir do pão, a benção e a distribuição (nesta primeira parte, o anfitrião faz um discurso); 2) o cordeiro é abençoado (somente o anfitrião come o primeiro pedaço do cordeiro); 3) ofertas festivas são comidas com o pão mergulhado no molho; 4) finalmente o cordeiro é comido por todos.
O lava-pés aconteceu entre o partir do pão e o comer do bocado mergulhado no molho. Seguindo as rígidas normas do ritual, Jesus como anfitrião, partiu o pão, abençoou, distribuiu e fez o discurso sobre seu significado. Neste momento, houve uma contenda entre os discípulos sobre quem seria o maior. Então, Jesus se levanta da mesa e lava os pés dos discípulos, retornando logo depois a fim de continuar o ritual, cujo momento seguinte era o bocado mergulhado no molho. Neste instante, Jesus fala sobre o significado do lava-pés e, em conexão, identifica o traidor com a entrega de um bocado. Como está escrito, foi a última ação de Judas naquela ceia, pois, saiu imediatamente e deixou de comer o cordeiro. Quando Jesus, através do gesto de dar o bocado, identificou o traidor a João, sua ação foi mais que natural aos discípulos, pois além de fazer parte do ritual, dar um bocado molhado a alguém representava profunda amizade. O lava-pés foi um evento extraordinário que aconteceu bem no meio da cerimônia, enquanto comiam a ceia.
A regra de Moisés diz que tudo deve ser consumido até o fim, (Êxodo 12:1-11). Depois de bebido o terceiro cálice, nada deve ser comido até o dia seguinte. Jesus não poderia depois da ceia dar algo para Judas comer, estaria infligindo uma regra. Conclui-se que, o lava-pés não é nem antes, nem depois, mas no meio. Conforme diz João: “durante a ceia”.
Harmonia das narrativas
O lava-pés aconteceu bem no meio da festa da páscoa, no exato momento da ceia. Diante das fragmentadas narrativas dos evangelhos, parece difícil entender a sequência dos eventos. Contudo, sabendo que a festa da páscoa foi o ritual seguido por Jesus, basta usá-lo como base para harmonizar as narrativas. Os quatro evangelistas trouxeram, cada um, suas próprias perspectivas sobre aquela noite, mas todos olharam para uma mesma realidade. Lucas dá ênfase na parte inicial, João enfatiza a parte central da festa e Marcos e Mateus o final. A seguir, comentários situando quais narrativas estão ligadas a quais momentos da festa pascal.
Situação antes da ceia.
Coração contaminado de Judas (João 13:1). Jesus e os dozes se dirigem para o local no crepúsculo da tarde (Marcos 14:17), conforme reza a regra da páscoa: “à tardinha” do dia 13 de Nisã.
Sentam-se à mesa.
(Mateus 26:20) (Lucas 22:14). A festa da páscoa sofreu algumas transformações ao longo da história desde a saída do Egito, quando era comemorada em pé. No tempo de Jesus, já a comemoravam reclinados sobre um divã, ao modelo das refeições gregas, mas uma parte ainda era em pé, sentavam somente quando iam comer o pão e o cordeiro.
Explicações de Jesus sobre as mudanças de significados.
(Lucas 22:15-20) O foco principal de Lucas é a explicação de Jesus sobre o novo significado da páscoa. Ele frisa o momento do discurso que, de acordo com o ritual, acontece quando é tomado o segundo cálice. Ao se tomar o terceiro cálice Jesus também falou de seu sentido. Lucas retratou isto, dizendo: “depois da ceia, fez o mesmo com o cálice”.
O ritual pascal é organizado em torno de quatro cálices, dois antes e dois depois da ceia. Lucas não se refere a todos, apenas sobre o segundo e o terceiro. No primeiro cálice referido por Lucas, seguindo a ordem do ritual, Jesus diz que não mais comerá da páscoa. No segundo cálice referido por Lucas, que equivale ao terceiro na sequência do ritual o Mestre explica seu novo significado e ordena que os discípulos bebam.
O texto de Lucas sobre o cálice da nova aliança está antes do texto sobre o traidor, todavia o evento real do cálice está após. Isto é certo pela presença dos advérbios: “semelhantemente” e “depois”. O primeiro se refere a modo, o segundo a tempo, mostrando que a ação envolvendo o segundo cálice de Lucas é feita do mesmo modo (do pão), mas num tempo posterior, no caso, depois ceia do cordeiro. O segundo cálice de Lucas, como sua explicação e a ordem para beber dele com o novo sentido vieram após a ceia. Não quer dizer, contudo, que naquela noite já o fizeram memória de Cristo, mas, sem dúvida, ele trata da nova aliança.
Entrementes os dois cálices de Lucas, Jesus toma o pão, dá graças, reparte e explica sobre a mudança de significado. De acordo com o ritual, antes da ceia do cordeiro, um pão era tomado, abençoado, partido, colocado em cima do pão inteiro e proferido as seguintes palavras: “este é o pão da aflição que nossos pais comeram no Egito”. Jesus dá novo significado, dizendo: “Isto é o meu corpo, que por vós é dado”. Até este momento foram apenas explicações, pois, não aparece aqui uma ordem imperativa do tipo “comei”, como aparece em Marcos e Mateus. O motivo é simples: era apenas uma explicação, ato natural da cerimônia, não a ação de comer. Em Lucas, eles não comeram o pão, apenas ouviram o discurso dado por Jesus. O ato real de comer o pão aconteceu mais tarde. O pão era comido depois que o anfitrião come o primeiro pedaço. Todavia, este pão em Lucas ainda é da ceia pascal, não da ceia do Senhor. A ordem de comer com o novo sentido aconteceu bem no final da ceia e foi um evento extraordinário. Foi depois deste discurso sobre o pão que aconteceu o lava-pés.
Consciência de Jesus sobre o fim de sua missão.
(João 13:2) Eis um momento em que devemos aplicar a hermenêutica. O evangelho de João é o único que fala sobre o lava-pés. João parte de um momento durante a ceia, quando Jesus já estava à mesa. A narrativa joanina se situa bem no meio do cerimonial, quando comem, entre o segundo e terceiro cálices. João apresenta o motivo que fez Jesus levantar da ceia para lavar os pés de seus discípulos: sua partida para o Pai e a necessidade de entregar o reino a eles. João contextua sua narrativa com uma oposição de sentimentos entre Jesus e Judas: o mestre manteve uma relação amistosa, fiel e verdadeira com os discípulos até o fim, Judas o contrário. Como todas as coisas estavam nas mãos de Jesus e seriam deixadas nas mãos dos discípulos, era preciso tirar do meio aquele que não tinha parte, o de coração impuro. Isto Jesus o fez através do lava-pés e do pão molhado. Era profético, compare João 13:18 com Salmos 41:10.
O lava-pés e a identificação do traidor.
(João 13:4-11) O lava-pés não fazia parte do ritual pascal. Foi inserido por Jesus bem no auge da festa, logo depois do segundo cálice e da benção do pão. Ele contém significados especiais. Além de ser um ato que dá o exemplo de humildade, o lava-pés também representa purificação. Judas não estava limpo (puro), não adiantava lavar somente os pés. Não se pode dizer que lavar os pés vai purificar, mas lavam os pés aqueles que estão puros. A pureza, neste caso, é a humildade no coração, o que Judas não tinha. Quem é impuro não tem parte com Jesus.
Jesus explica sobre a humildade que deve haver naqueles que irão perpetuar sua missão.
(João 13:12-17) A narrativa de João sobre o lava-pés se encerra quando Jesus retorna à mesa. De ora em diante, já na mesa, Ele continuará sua exposição sobre o reino de Deus. Neste segmento de texto, o Senhor fala sobre a humildade e ordena que o lava-pés seja feito conforme o exemplo. Esta exposição, de acordo com a sequência da narrativa de João, está antes da identificação do traidor. Isto, evidentemente, coloca o lava-pés durante a ceia, pois foi na hora do pão molhado que Jesus identificou o traidor. Importante observar que Jesus vestiu novamente a túnica ao retornar para a mesa, pois era obrigatório que o anfitrião da festa se vestisse de forma especial para dirigir o ritual. Sinal de que a festa não havia acabado, portanto, o lava-pés está no meio da refeição.
(a) Jesus fala sutilmente sobre o traidor. (b) Jesus fala abertamente sobre o traidor.
(João 13:18-30) Aqui está a chave, ou a estrutura-mestra, para o entendimento do assunto. A única parte dos acontecimentos que é narrada pelos quatro evangelhos, sendo, portanto, um ponto de sincronia. Lucas mostra que a identificação do traidor aconteceu depois do segundo cálice, quando se parte o pão e o distribui. João mostra que Jesus estava sentado à mesa, depois do lava-pés. Os evangelhos de Mateus e Marcos dizem que os discípulos estavam comendo. Este evento está situado entre o segundo e o terceiro cálice quando comiam o pão, referido em Lucas e em João.
Mateus, Marcos e Lucas narram de forma simplificada a identificação do traidor. João, de forma pormenorizada, ressaltando como Jesus fala do traidor: primeiro, sutilmente, depois, abertamente. No primeiro momento, com base no Salmo 41:10, Jesus antecipa aos discípulos o evento da traição. Na sequência, Jesus fala mais claramente, causando um forte impacto na mente dos discípulos. Tão forte foi a impressão que aquela noite ficaria conhecida como: a noite em que o Senhor foi traído (I Coríntios 11:23).
O traidor é identificado não de forma explícita, mas implícita, por um bocado de pão molhado. Um ato rotineiro do cerimonial pascal que ofuscou a percepção dos discípulos, exceto de João, a quem Jesus explicou seu gesto. Judas saiu imediatamente ao comer o bocado molhado, o que significa que não participou da etapa seguinte, que era comer do cordeiro. “Saiu logo”, como diz João, não é permanecer até o evento seguinte. Se os discípulos acharam que ele ia comprar algo para a festa, é sinal que ela estava no começo, uma vez que tudo devia ser consumido até o fim (Êxodo 12:1-11), ou acharam que ia dar algo aos pobres. Na época, haviam muitos pobres que dormiam nas ruas de Jerusalém, consequência da centralização da festa da páscoa imposta pelo rei Josias.
Depois que Judas saiu, Jesus fala de sua glória.
(João 13:31-32) De ora em diante, a narrativa de João já se encontra em outro contexto, não mais o da ceia.
A ceia pascal se transforma na ceia da nova aliança.
(Mateus 26:26-29) (Marcos 14:22-25) Os discípulos ainda estão comendo o cordeiro e demais ingredientes da festa até o fim. Neste trecho da narrativa, algo muito importante e pouco percebido por leitores comuns (aqueles que leem sem conhecer o ritual da páscoa). Uma nova benção do pão é feita por Jesus “enquanto comem” o cordeiro. Não existe esta segunda benção no ritual judaico, ela é feita uma vez antes de comerem. Mas, segundo Mateus e Marcos, Jesus abençoa o pão “enquanto comem”. E por que isto? Porque a lei determinava que tudo devia ser consumido até o fim e nada poderia ser consumido depois da ceia. Inclusive o cordeiro deveria ser conforme o tamanho da família para não sobrar (Êxodo 12:1-11). Jesus tinha que abençoar o pão que significaria seu corpo antes que tudo fosse consumido, portanto, a necessidade de fazê-lo enquanto comiam. Quanto ao cálice, isto não se fazia necessário, porque logo após a ceia, seria bebido o terceiro. E qual o motivo desta segunda benção? Primeiro porque era o estabelecimento da nova aliança, segundo porque Judas havia participado daquele pão primeiramente abençoado. Sem falar que não faz sentido uma aliança com Judas presente, uma vez que estava com pensamentos malignos em seu coração. O que peremptoriamente poderia significar uma aliança com o próprio satanás. Quando estão para terminar a ceia do cordeiro os discípulos participam do pão com o novo sentido. As expressões de Mateus (26:26) “enquanto comiam” e Marcos (14:22) “comendo eles” confirmam isso e mostram que Jesus, ao tomar o pão e o abençoar novamente, fez uma ação simultânea ao ato dos discípulos comerem a ceia pascal. De forma que o comer da ceia pascal ficou entrelaçado com o comer o pão com o significado do corpo de Cristo. Logo após, tomam o terceiro cálice estabelecendo a nova aliança, pura e sem mácula.
Ao encerrar a ceia, encerra-se a parte intermediária. A parte final contemplará dois cálices, sendo um acompanhado da explicação do novo significado e base da nova aliança. Desta forma, concorda-se com o texto de Paulo que indica ser depois da ceia que Jesus tomou o cálice e o abençoou. Como visto, tudo se harmoniza perfeitamente. Os evangelistas entre si e todo o cerimonial da páscoa judaica. Jesus obedeceu a todos os preceitos judaicos da páscoa nos mínimos detalhes. Para finalizar o comentário sobre este fragmento da narrativa, tanto em Lucas como em Mateus e Marcos Jesus fala que não vai mais beber do fruto da vide. Em Lucas o texto se refere ao cálice pascal e Mateus e Marcos ao novo cálice. Mas, não há nada de especial para nosso propósito nesta diferenciação.
A contenda
(Lucas 22:24) Este texto é o único fragmento da narrativa que não é “possível” sincronizá-lo. Lucas situa a discussão dos discípulos após a fala de Jesus sobre o traidor, quando, na verdade, ocorre antes. Isto, porém, é uma questão redacional, pois, caso admitamos somente a sequência de Lucas, teremos que admitir que os demais evangelhos estão fora da ordem. Isto implicaria na impossibilidade de harmonizá-los sem distorção. Mas este conflito não existe, pois a questão é resolvida pelo advérbio “também” (advérbio de inclusão), mostrando que a discussão aconteceu durante a ceia. Isto é simples de entender, pois é evidente que a discussão foi o motivo para Jesus levantar da mesa e lavar os pés dos discípulos. Este texto deve ser sincronizado entre os versos 3 e 4 do capítulo 13 do evangelho de João. Principalmente porque não existe lógica nenhuma a discussão entre eles acontecer depois da repreensão de Jesus.
A explicação sobre a forma de governar a igreja
(Lucas 22:25-30) O mesmo raciocínio acima deve ser usado para Lucas 22:25-30, ou seja, este texto está em paralelo com João 13:12-17 e em harmonia com o momento da ceia.
Fim da cerimônia
(Mateus 26:30-31) (Marcos 14:26-27) (Lucas 22:39) (João 18:1) Mateus e Marcos mencionam o hino final, de acordo com o ritual da cerimônia pascal. Os outros apenas que saíram para o Monte das Oliveiras e Vale de Cedrom.
Esta harmonização com base no ritual judaico da páscoa confirma a seguinte sequência dos eventos: 1) “Desejei muito comer”; 2) “tomou o cálice”; 3) “tomou o pão”; 4) “levantou-se uma contenda entre eles”; 5) “levantou-se da ceia”; 6) “começou a lavar os pés”; 7) “retornou para a mesa”; 8) “entendeis o que eu fiz?”; 9) “não falo de todos vós”; 10) “um de vós me trairá”; 11) “quem eu der o pedaço de pão molhado”; 12) “saiu logo”; 13) “tomou o pão”; 14) “tomou o cálice” e; 15) “cantado um hino”. O lava-pés aconteceu durante a ceia, como mostra a harmonia dos evangelhos.
A transformação da páscoa judaica na Ceia do Senhor
A páscoa transformou-se na Ceia do Senhor. Não foi ato repentino, mas com o passar do tempo. Pois, Jesus não alterou o ritual, ou pelo menos não encontramos nada neste sentido. Ele apenas deu novo significado ao pão e ao vinho. Assim, a igreja primitiva, principalmente a formada por judeus, celebrou a Ceia do Senhor mais ou menos nos mesmos moldes do ritual da páscoa judaica, com exceção do sacrifício do cordeiro. Sendo judeus, não deixariam sua cultura com seus ritos e tradições tão rapidamente, talvez, nunca deixaram, como podemos atestar em várias passagens do Novo Testamento (At. 15:3; 18:18, 20:6; 21:20-26; 22:17; 23:4, 24:17,18 e 26:21). Foi somente com a expansão do evangelho aos gentios que as coisas se modificaram. Temos, então, que a estrutura do ritual da páscoa judaica beber/comer/beber transformou-se apenas em comer/beber na ceia da igreja gentílica. Consequência dessa modificação na estrutura do ritual ao longo do tempo: o lava-pés ficou posicionado antes da Ceia do Senhor como o primeiro evento dentro do ritual seguido do pão e do vinho.
Três fatores explicam esta transformação: 1) ausência do cordeiro nas comemorações; 2) novo significado do pão e vinho; 3) a adaptação do seu ritual por causa dos excessos da igreja.
O ritual da páscoa continha quatro cálices que marcavam as partes da festa, dois cálices antes do cordeiro e dois cálices depois. Com a ausência do cordeiro o lava-pés e o pão seriam celebrados entre o segundo e o terceiro cálices. Mas ao celebrarem a Ceia do Senhor, prevaleceu apenas o terceiro cálice do ritual pascal, aquele abençoado por Jesus para firmar a nova aliança. Os demais cálices foram deixados nas comemorações subsequentes, como mostra o apóstolo Paulo quando estabeleceu um ritual simplificado apenas com o pão e o cálice na igreja de Corinto. As normas do apóstolo Paulo para comer em casa e esperar uns pelos outros (v. 33 e 34) denotam que a Ceia era, até aquele presente momento, celebrada com boa quantia de comes e bebes, nos mesmos moldes da ceia pascal e, então, passou a ser comemorada como atualmente. A simplificação do ritual não contraria a ordem de Jesus, pois Paulo diz que transmitiu aquilo que recebeu, (I Co. 11:23). Esta simplificação foi motivada por causa dos excessos dos irmãos da igreja de Corinto que comiam e bebiam exageradamente, atos reprovados por Paulo, (v. 11 a 22). Dos quatro cálices da páscoa judaica permaneceu apenas um, aquele que Jesus pactuou a nova aliança.
Esta transformação histórica somada com o novo sentido que Jesus deu aos símbolos da páscoa fez com que a ritualística da páscoa judaica torna-se a ritualística da Santa Ceia. Com a eliminação dos cálices e do cordeiro, o lava-pés, evidentemente, ficou antes do pão e do cálice na nova aliança. É o que mostra a história bíblica e é assim que devemos fazê-lo hoje.
A questão da tradução
O lava-pés poderia ser depois da ceia se fixássemos apenas em algumas traduções. Porém, a simples tradução é pouco para a defesa de uma tese. A compreensão do texto levando em conta a cultura que foi escrito ou a cultura do evento é mais relevante. A exposição acima deixa muito claro que as traduções devem ser vertidas para “durante a ceia”, não “depois da ceia”, e nem “antes da ceia”. É desnecessário combater o argumento da tradução, pois ele em si não faz sentido, principalmente diante do já exposto acima. Contudo, algumas ressalvas.
Esta ideia de que o lava-pés foi realizado depois da ceia surgiu, provavelmente, com base em versões como a Reina Valera, século XVI. Diz seu texto: “y la Cena acabada” (Jo 13:2), traduzido quer dizer “acabada a ceia”. A Vulgata Padre Figueiredo, 1821, também diz: “acabada a ceia”. Apesar de existirem, como estas, outras traduções com o mesmo sentido, a maioria das versões traduz para “durante a ceia”. Por exemplo, a Nova Vulgata já diz: “E no jantar”. A tradução CNBB, baseada na Nova Vulgata, diz que: “Foi durante a ceia”. Nova Versão Internacional: “Estava sendo servido o jantar”. Almeida Revisada Imprensa Bíblica: “Enquanto ceavam”. Sociedade Bíblica Britânica e Versão Católica: “Durante a ceia”. Também a King James: “Durante a ceia”. Moderno Grego: “E depois veio o jantar”. American Standard Version: “E durante o jantar”. A versão Easy-to-Read (de fácil leitura): “Jesus e seus discípulos estavam jantando”, e no verso 4 diz: “Por isso, durante a ceia, Jesus se levantou”. E, há casos, como as Edições Paulinas que traduz para “antes da ceia”. A Moderno Grego também transmite a ideia de que aconteceu antes. Em qual versão dar crédito? A que diz ser antes, durante, ou depois? Através der traduções, não se chega ao consenso.
Para solucionar as divergências das traduções, será necessário recorrer a manuscritos gregos antigos, contudo, isto não altera os fatos acontecidos, como estão bem expostos acima. Partir de uma tradução em terceira língua é colocar duas cortinas entre a realidade do fato e a busca pela compreensão. É suficiente nesta questão, verificar as traduções modernas que utilizam melhores recursos como os manuscritos do Mar Morto, o texto Alexandrino, a computação, a crítica textual e a ciência linguística, arqueológica etc. E a esmagadora maioria das versões modernas traduz o texto mostrando que Jesus levantou-se da mesa enquanto a ceia acontecia, logo depois do seu início, não depois de acabada. Só para constar, a palavra grega usada no texto é genomenou, que vem do verbo ginomai, que quer dizer “ter nascido”, “vir a existência”, ou “foi criado”, não algo que acabou. Não há razões para insistir neste argumento da tradução. Se houver insistência, preponderará a ideia do lava-pés durante a ceia.
Conclusão: o lava-pés foi antes ou depois?
Diante do exposto acima, vamos tomar uma posição equilibrando e sintetizando o assunto. A conclusão é simplesmente a única possível: devemos realizar o lava-pés antes do pão e do vinho. As razões foram dadas no início do estudo e confirmadas durante a discussão. São: 1) a narrativa de João define o momento do lava-pés; 2) os evangelhos são harmônicos e revelam a sequência dos eventos; 3) houve uma transformação histórica no ritual.
A narrativa de João define o momento do lava-pés
João é o único texto que temos sobre o lava-pés. Não é possível ignorar a única fonte de informação sobre este evento. A narrativa de João define a posição do lava-pés no ambiente da festa pascal. As referências que esta narrativa faz ao ritual são duas: ceia e o pão molhado. O pão molhado é uma parte da ceia e a ceia está entre o segundo e terceiro cálice. Nada podia ser comido depois do terceiro cálice. A sequência de João é: levantar-se da ceia, lavar os pés, voltar para a mesa, discursar sobre o maior e menor, indicar o traidor com pão molhado e o traidor sai. Todos estes eventos ocorrem “durante a ceia”, nem antes, nem depois, aconteceu no meio do ritual, no auge da festa, enquanto comem. Conforme também dizem Mateus e Marcos: “enquanto ceavam”. Jesus aproveitou o momento do pão molhado para identificar o traidor de forma particular a João. Não há possibilidade de ter ocorrido depois da ceia, pois seria infligir uma regra, o que faria de Jesus um transgressor. O lava-pés aconteceu durante a ceia, entre o segundo e o terceiro cálice.
Os evangelhos são harmônicos e revelam a sequencia dos eventos
A segunda razão é a harmonia entre os evangelhos. Ela nos mostra quais partes da festa aconteceram antes e depois da identificação do traidor. Os evangelhos não se contradizem. A harmonização feita neste estudo mostrou que os quatros evangelistas falaram de partes específicas do ritual: João, o lava-pés; Lucas o ritual pascal; e, Mateus e Marcos a “ceia do Senhor”. Tiveram em comum a identificação do traidor. Houve somente uma identificação do traidor naquela noite e foi tão impactante na mente dos discípulos que ficou conhecida como a “noite em que o Senhor foi traído”. Diante da harmonização, podemos dizer que João se preocupou com um acontecimento extraordinário: o lava-pés com a identificação do traidor. Isto se deu durante a ceia quando é comido o bocado molhado, entre o segundo e terceiro cálice. Lucas fala do traidor, porém, concentra sua narrativa na parte inicial da festa: o segundo cálice e a benção do pão pascal. Mateus e Marcos também falam do traidor, mas concentram suas narrativas na parte final, comer o pão da Santa Ceia e o terceiro cálice.
A identificação do traidor é a corda que amarra todas as narrativas num feixe. João diz que foi “durante a ceia” que ela aconteceu, Mateus e Marcos confirmam que foi “enquanto ceavam” e Lucas que foi pouco depois da benção do pão pascal. O lava-pés está antes da identificação do traidor, tanto pelo contexto de João, quanto pela alusão ao Salmo 41. Portanto, o lava-pés aconteceu no meio do ritual da páscoa, no seu auge, no momento mais importante, quando todos reclinam sobre a mesa. Sem dúvida, o lava-pés foi durante a ceia, não depois. Não há o que discutir, ou distorcer. A harmonização mostra que o lava-pés deve ser comemorado antes do pão e do vinho.
Houve uma transformação histórica no ritual
A terceira razão diz respeito ao ritual. O ritual com quatro cálices foi, provavelmente, seguido, mais ou menos, conforme a regra judaica pela igreja primitiva até que Paulo deu ordens para a igreja gentílica celebrar de forma simplificada, evitando os excessos no comer e beber. A partir de então, a Ceia do Senhor foi comemorada com apenas um cálice (o terceiro), após o pão, na mesma ordem do ritual pascal. Com esta simplificação, que dispensava o primeiro e o segundo cálice, o lava-pés ficou posicionado antes do pão e do cálice do Senhor. Mais uma vez, o lava-pés é confirmado antes da Ceia do Senhor.
Razões finais
Além das razões acima discutidas, outros pontos cooperam para confirmar o lava-pés antes da Ceia. Primeiro, o assunto não pode ser compreendido sem ter como pano de fundo o ritual da páscoa judaica, que tinha normas rígidas de sequência e foram seguidas por Jesus. As etapas do ritual da páscoa eram definidas pelos quatro cálices. Entre o segundo e o terceiro era comido o pão e o cordeiro, foi neste instante que aconteceu o lava-pés. Nada podia ser comido após até o dia seguinte. Portanto, Jesus não poderia ter dado a Judas um bocado molhado depois do cordeiro. Evidentemente, Judas e qualquer outro discípulo recusariam, pois significaria ir contra a lei de Moisés.
Ainda vimos que Jesus abençoou o pão pela segunda vez, “enquanto comiam”, antes que o cordeiro e todos os ingredientes fossem totalmente consumidos. Nesta segunda benção, Judas não estava mais presente. Pois é inconcebível a ideia de que ele tivesse participado, o que significaria uma aliança com o próprio satanás através do coração de Judas. Ao compreendermos a nova aliança através do livro de Hebreus, vemos que não há nenhuma possibilidade do mal estar presente neste simbolismo do pão e do vinho. A ideia de que Judas não estava presente na Ceia do Senhor é reforçada pela incompreensão dos discípulos quando acharam que Judas saíra para comprar mais artigos para a festa. Como poderiam pensar assim, se a ceia houvesse acabado, uma vez que nada mais podia ser comido até o dia seguinte? Judas saiu antes da ceia do cordeiro. O pão, o qual Jesus verteu seu significado para seu corpo, foi comido antes de acabarem de comer todos os ingredientes da páscoa.
Por fim, não há tradução da Bíblia que resista ao versar “depois da ceia”. O lava-pés foi durante a ceia pascal. As traduções que dão a entender ser depois não condizem com a realidade dos acontecimentos. Citamos várias traduções, inclusive a Vulgata, que traduzia para “acabada a ceia”, mas em sua versão mais recente, já traduz para “e no jantar”. Isto acontece porque se apoia em descobertas mais recentes com informações mais precisas sobre o texto original do que possuíam os tradutores das antigas versões como a da Reina Valera. Sabemos também que a grande dificuldade de um tradutor é conhecer com precisão a cultura de origem do texto, ou do acontecimento. O correto é prevalecer a compreensão cultural sobre a gramatical. A tradução mal ou bem feita não tem força para mudar a realidade dos fatos. A tradução não é argumento para posicionar o lava-pés após o pão. Ele continua sendo antes
Fora o exposto acima, outros pequenos detalhes colaboram para a defesa desta tese, porém, desnecessárias no momento. Diante de tudo, o lava-pés deve ser realizado antes do pão e do vinho do Senhor.
Autor: Edy Brilhador