Prof. Ms. Francisco Wellington Rodrigues Lima (1)
Segundo Alberto Cousté, a tradição mesopotâmica é uma das mais heterogêneas da Antiguidade, com a característica de que seus deuses não apresentavam conduta ou atributos constantes.
Nessa cultura heterogênea, focaremos o mito de “Sataran”, o deus serpente, cujo nome e atributos recordam fortemente nosso protagonista, sobretudo na divulgada versão hebréia.
A história de “Sataran” está ligada diretamente à narrativa de Innana (Dama do Céu) e Tammuz, seu filho e amante. Segundo a tradição desse povo, Tammuz, o mais antigo dos deuses cíclicos, cujo culto central era a cópula entre o rei e uma sacerdotisa do templo que se realizava na madrugada do primeiro dia do ano, morre e desce aos infernos. A Deusa-Mãe Inanna, potência suprema do panteão caldeu, vai buscá-lo. Apesar de sua imensa autoridade, encontra enormes dificuldades para recuperar o filho-amante; só o consegue quando os deuses infernais, muito a contragosto, dão sua permissão.[i]
Nesse contexto, ressaltamos que a figura de “Sataran” será o grande interventor da história incestuosa de Innana e Tammuz, caso parecido com a narrativa do diabo Egípcio, Seth, como veremos mais adiante.
Outra variante cosmogônica da história de “Sataran” e da narrativa de Innana fala de Enlil, demiurgo, nascido de An (Céu) e Ki (Terra), que, chegado à maturidade, provoca a separação dos pais, possui sua mãe e a faz parir todo vivente. Conhecido como o Senhor do Trono, seu culto continha muitos elementos de terror. Ainda segundo Cousté, não é “improvável que tenha sido o Diabo”, tal como nos é “apresentado por Abraão” nas escrituras sagradas do Corão.[ii]
Depois de mencionarmos as figuras de “Sataran” e “Enlil”, verificamos ainda, em pleno apogeu babilônico, segundo Mircea Eliade e Ioan Couliano, o surgimento de “Marduk” deus, que apresenta características infernais. A história desse deus, conforme averiguamos, pode ser encontrada no Enuma elish[iii] e é contada, resumidamente, da seguinte maneira: Apsu e Tiamat enfrentavam a rebelião dos próprios filhos (como Jeová enfrentou a de seus anjos), e Marduk, um deles, consegue matá-los, usurpando-lhes o poder. Marduk obtém o reinado dos deuses e leva consigo os ventos e os raios para o combate. Nessa grande batalha pelo poder, o diabo mesopotâmico ainda cortou o corpo de Tiamat em duas metades simétricas, fato que alude à criação do mundo.[iv]
Nessa narrativa, encontramos semelhanças que se seguem também na história de Lúcifer (anjo de luz) e dos anjos decaídos, bem como na sua rebelião contra Deus que ocasionou na queda do anjo luminoso. A única diferença reside no fato de Marduk matar os pais e apossar-se do poder. Porém, encontramos uma similaridade maior dessa narrativa com a história mitológica de Seth, o diabo egípcio, e com o episódio mitológico do destronamento de Cronos por seu filho, Zeus, deus bastante cultuado e respeitado na Grécia Antiga.
Ainda em se tratando de seres que representaram o Mal na cultura mesopotâmica, verificamos a invenção de Lilith, a mais original história demonológica de todos os tempos, afirma Pierre Brunel. Ela era o terror daqueles que se achavam entregues ao sono, pois era considerada a rainha dos súcubos. Ela obtinha, segundo as narrativas, o sêmen de que necessitava para engendrar monstros. Com o nome de Lamasht, “a bela perversa” dedicava-se a atormentar as mulheres, a quem odiava, no exercício de suas funções fundamentais: complicava os partos, provocava abortos, impedia a amamentação.[v]
Lilith, com a decadência dos acádios e o conseqüente predomínio dos babilônicos, desapareceu, e só iremos encontrá-la em Isaías 34, 14, escrito provavelmente por volta do ano 740 a. C., quando o profeta anuncia o fim do Edom: “Cães e gatos se reunirão ali, e ali se juntarão os sátiros. Também ali Lilith descansará e achará seu lugar de repouso”.[vi]
Outro relato de grande importância no qual podemos testemunhar a sobrevivência dos mitos agrários é a história de Mot, filho de El (o Diabo). Segundo os mesopotâmicos, após um combate com um dragão chamado Yam ou Nahar, que terminou com a vitória de Aleyan, o vencedor parece haver sido instalado num palácio real. Mas o benfeitor Aleyan foi assassinado em pleno verão, e de sua descida ao mundo subterrâneo eram símbolos as plantas murchas e o solo ressecado durante a estação do estio. Sua esposa Anath, aparentemente Ishtar desta lenda, empreendeu a busca de seu corpo e, quando encontrou Mot, o adversário, agarrou-o, abriu-o, de cima a baixo com uma foice ritual (harpé), levantou-o, assou-o no fogo, triturou-o numa pedra de moinho, espalhou sua carne sobre os campos e deu-a de comer aos pássaros. Tratou-o, enfim, como ao grão recolhido. Mais tarde, Mot foi ressuscitado e persuadido pela deusa do sol a render-se e reconhecer a beleza de Aleyan, com quem a terra recobrou sua fertilidade.[vii]
A narrativa acima nos faz lembrar, mais uma vez, a história de Osíris, Ísis e Seth, dentro das tradições do povo egípcio. É importante observamos nesses relatos a constante luta pelo poder, as ações cruéis que essas entidades do mal acabam por executar e os significados que essas ações representaram para mentalidade dos pagãos.
Ainda com base na tradição mesopotâmica, temos a presença do Diabo na Epopéia de Gilgamesh[viii], o poema mais antigo da humanidade, escrito por volta do século XXII a. C., em pleno apogeu acádio. Nele, o diabo desempenha um papel polivalente, na complexa e atormentada figura de Enkidu, assumindo pela primeira vez a culpa dos homens. Alguns temas importantes da história do mundo e do Diabo são mencionados nesse poema, dentre eles: o par de demiurgos, o dilúvio universal, a árvore do conhecimento, a tentação, o pecado, o elixir da vida eterna etc.[ix]
Contudo, o que interessa aqui é conhecer um pouco dos seres presentes no mundo mitológico do povo mesopotâmico, em especial, daqueles que representaram o Mal (aqueles que provocaram a desgraça; representaram o feio, o disforme, o sujo, o defeituoso; simbolizaram a falta de qualidades para alguma coisa; provocaram a covardia; os de baixa origem; os malvados, os criminosos; aqueles que agiram com má intenção; provocaram atos injustamente; trouxeram a infelicidade; provocaram o desregramento; os invejosos; os cruéis; os que agiram com imprudência), pois, como podemos observar, suas ações, caracteres e outras possíveis atribuições constituíram o Mal na cultura pagã, que persistiram na mente humana durante a Antiguidade Clássica e contribuíram para a representação do Diabo na Idade Média.
- Mestrado em Letras – Universidade Federal do Ceará – UFC. Especialização em Letras – Universidade Federal do Ceará – UFC Graduação em Letras – Universidade Federal do Ceará – UFC.
[i] COUSTÉ, Alberto. Op. cit., p. 115.
[ii] Idem, Ibidem, p. 115.
[iii] Poema babilônico da criação. Está associado às festas de ano novo (Akitu), celebradas todas as primaveras na cidade da Babilônia. A narrativa exalta Marduk como o maior dos deuses, e o de grande maldade. COUSTÉ, Alberto. Biografia do Diabo. Trad.: Luca Albuquerque. 2 ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997, p. 116.
[iv] ELIADE, Mircea. COULIANO P. Ioan. Dicionário das religiões. Trad. Ivone Castilho Benedetti. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
[v] BRUNEL, Pierre (Organização). Op. cit., pp. 582-585.
[vi] COUSTÉ, Alberto. Op. cit., p.117.
[vii] Idem, Ibidem, p 117.
[viii] Segundo o Poema, Gilgamesh teria sido o rei de Uruk e símbolo de uma das dinastias mais antigas do Império Mesopotâmico. O poema acadiano que chegou até nós foi redigido e desenvolvido por um escriba, provavelmente na metade do período babilônico, com o acréscimo do relato do delúvio de Atrahasis. Essa versão mais completa da lenda inicia-se com louvor às grandes construções de Uruk, cidade famosa por seu templo de Inana e por seus muros monumentais de tijolos. Gilgamesh foi um rei que, segundo o poema, tirano e com descendência divina (dois terços divino e um terço humano). COUSTÉ, Alberto. Biografia do Diabo. Trad.: Luca Albuquerque. 2 ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997, pp. 118-119.
[ix] COUSTÉ, Alberto. Op. cit., p. 119.
[xx] COUSTÉ, Alberto. Op. cit., p.123.
[xi] Idem, Ibidem, p.124.
[xii] Idem, Ibidem, p.125.
[xiv] PAPINI, Giovanni. Op. Cit., p. 242.
[xiv] Idem, Ibidem, p.244.